O Panóptico e os Tribunais de Contas

Por Doris de Miranda Coutinho*

Dentre as contribuições dadas pelo filósofo inglês Jeremy Bentham ao pensamento liberal do século XIX, talvez a mais relevante e atual seja a noção de poder e controle construída a partir da figura do Panóptico. Tal denominação representa um sistema carcerário ideal, ilustrado por um conjunto de celas separadas, cada uma das quais recolhendo um indivíduo, dispostas num círculo de raios com uma torre no centro, do alto da qual se encontra o vigilante, que acompanha, por todos os ângulos, as atividades dos vigiados, sem que estes o vejam.

No entanto, a própria figura do Panóptico suscita uma importante e velha questão: a quem incumbiria a tarefa de vigiar o vigilante? Como fazer com que o seu controle não seja descontrolado e, portanto, arbitrário?

A pergunta, objeto de várias respostas ao longo do tempo, mantém-se atual e intrigante, especialmente quanto ao regime dos Tribunais de Contas.

As cortes de contas, por força do que dispõe a Constituição Federal, compõem, junto ao Poder Legislativo, a estrutura institucional responsável pela fiscalização contábil, orçamentária e financeira da administração pública dos três poderes. Ou seja, materializa o controle externo do poder público.

Também por vontade do constituinte, conferiu-se aos tribunais de contas posição independente perante os poderes da República, não integrando qualquer deles, funcional ou estruturalmente.

Vale salientar que, mesmo em relação ao Poder Legislativo, ao qual eles prestam auxílio de natureza essencial, inexiste vínculo de subordinação, uma vez que também lhe cabe controlá-lo.

Ocorre que o tribunal de contas, por integrar o corpo estatal e exercer parcela do poder de controle, reclama, para o seu funcionamento, recursos públicos, razão pela qual foram dotados de autonomia financeira e administrativa. Por conta disso, e considerando que a essência do regime republicano implica na indisponibilidade do dinheiro coletivo e a responsabilidade daqueles que o manejam, é evidente que a corte de contas não deveria escapar a alguma forma de vigilância da sua atuação. O poder de fiscalização não é autopoiético. Portanto, os próprios órgãos encarregados desta atividade devem render contas de sua atuação à sociedade.

Mas na atual forma de organização jus-política, os tribunais de contas encontram-se desvencilhados de controle, gerando uma estranha conjuntura na qual eles só se sujeitam à autofiscalização.

Entretanto, num cenário de desvelamento cada vez maior de casos de corrupção no setor público, a sociedade passou a questionar até mesmo a eficácia e a utilidade dos organismos de controle, que não foram capazes de prevenir ou conter os desvios e a deterioração do erário. Ademais disso, o crescente número de acusações envolvendo membros dos próprios tribunais de contas no âmbito dos escândalos, corrobora à formação deste quadro de desconfiança em relação à instituição que fora concebida para só se ocupar da fiscalização da gestão da coisa pública.

Seria salutar, portanto, pensar na correção dessa incongruência, que mantém uma entidade de controle, não-controlada, ou, nos termos de Bentham, um “vidente não-visível”. Para isso, se faz necessária a criação de um órgão que promova tanto a vigilância permanente dos tribunais de contas, como atue no aprimoramento dos seus procedimentos. Precisa, em suma, do Conselho Nacional dos Tribunais de Contas (CNTC).

Boa oportunidade se perdeu quando da criação do CNJ e CNMP, pela Emenda Constitucional nº 45/2004. A omissão quanto à criação do CNTC, naquela ocasião, além de despropositada, foi paradoxal. Não faz sentido que os magistrados do Poder Judiciário e os conselheiros e ministros dos Tribunais de Contas, dotados das mesmas prerrogativas, garantias, vedações e sujeitos ao mesmo diploma normativo-funcional, sejam controlados de forma díspar.

Além disso, não se pode pensar que os requisitos para investidura dos ministros e conselheiros das cortes de contas, impostos pelo texto constitucional, sobretudo a idoneidade moral e a reputação ilibada, se exaurem no ato de nomeação. A vitaliciedade do cargo induz à vitaliciedade dos requisitos. Perdendo-os no meio do caminho, esgota-se também a capacidade para exercer o ofício. E ao CNTC dever-se-ia atribuir essa aferição constante e a punição disciplinar, quando necessária.

Por outro lado, para que os resultados da ações de controle externo sejam entregues de forma satisfatória à sociedade, é imperioso o aperfeiçoamento dos processos de contas, tornando-se realmente efetivos e instrumentos de informação. E neste ponto não há dúvidas de que o CNTC também seria essencial.

Promover a integração entre os mecanismos de fiscalização pública, implementar e gerir um amplo portal de transparência das contas e emitir resoluções para uniformização do desarranjo de procedimentos espalhados pelos 34 tribunais de contas no Brasil, seriam apenas algumas das competências desta entidade que se mostra elementar ao desenvolvimento do controle externo.

Com estas medidas seguramente os tribunais de contas se tornariam mais transparentes, mais próximos dos ideais republicanos e, portanto, do controle que a sociedade almeja.

* Dóris de Miranda Coutinho é Conselheira do Tribunal de Contas do Estado do Tocantins. Doutoranda em Direito Constitucional na Universidade de Buenos Aires. Especialista em Política e Estratégia e em Gestão Pública com ênfase em controle externo. Membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros.