Você lembra o que fez ontem? Do ônibus escolar? Das aulas de inglês, de francês? Da senha de acesso ao site que visita vez por outra? As perguntas podem soar estranhas, porém basta entrar no universo de Ireneo Funes, o personagem de memória prodigiosa mas pouco dado às ideias, da ficção do escritor Jorge Luis Borges, para entender como a metáfora criada pelo argentino nos anos 1940 que chamava a atenção sobre a importância do pensar, se encaixa nos dias atuais. E foi a partir de Funes que o mestre em poética pela UFRJ Leonardo Lusitano Mósso conduziu, nesta quarta-feira (19/8), a roda literária ‘Encontro com Borges’, na Biblioteca Sergio Cavalieri Filho, na sede do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ).
A roda, com curadoria de Monica Chateaubriand, motivou debate intenso entre os participantes. Afinal, como destacou Mósso: “Numa sociedade onde somos estimulados a acumular conhecimentos, informações superficiais, também há espaço para o pensar? Após descrever o Funes, Borges faz uma análise e suspeita que ele, com sua supermemória, não tinha capacidade de pensar. Ele poderia ter um mundo entulhado de memória, mas será que ali existia pensamento? Pensamento é poder ver novos modos de vida. E o Funes tem um imobilismo muito grande”, observou o mestre, destacando que atualmente existe muito estímulo à informação e pouco ao pensamento.
Mósso comentou que, no fim do século passado, nos anos 1980, o filósofo Gilles Deleuze, em um de seus trabalhos, lembrou que Michel Foucault criticou fortemente a sociedade disciplinar, a disciplina que docilizava. “Deleuze enxergou que nos anos 1980 estávamos saindo da disciplina e indo para pior, para o controle. E na sociedade de controle você acha que está livre, mas ao mesmo tempo é controlado. E ele percebeu isso quando a informática ainda engatinhava”, disse, lembrando que a tecnologia de hoje, com suas engenhocas que conectam tudo e todos, muitas vezes levam ao controle disfarçado.
Para o mestre, Borges criou como caminho possível para pensar o problema do controle da verdade de Funes: a ficção. “Para Borges, as ficções são um modo potente de pensar, são o coração da realidade”, concluiu Mósso.