Bruno Dantas
Ecoou, entre tambores diplomáticos e coros digitais, o anúncio de que certas engrenagens tarifárias poderão girar “em breve”. A fanfarra foi audível — carta levada com pompa em malote oficial, postagem repercutida à exaustão — e bastou insinuar que alfândegas podem servir de diapasão para, sem mencionar credores nem devedores, lembrar que ajustes comerciais às vezes pretendem afinar melodias processuais além-mar.
Algo semelhante ensaiou Péricles em 432 a.C. Diante de desavenças com a diminuta Mégara, o estratego ateniense promulgou o Decreto Megarense, interditando à pólis rival o acesso a todos os portos da Liga de Delos. Não marcharam hoplitas; bastou o cerco mercantil. A sanção, concebida como lição civilizatória, atiçou rancores e precipitou a Guerra do Peloponeso — lembrança clássica de que garrotes econômicos raramente permanecem sob domínio absoluto de quem os maneja.
Atenas imaginava “educar” a vizinha pelo bolso; descobriu, tarde, que embargos engendram alianças defensivas e aceleram conflagrações imprevistas. Tucídides narra que, ao confundir porto com tribunal, a pólis viu suas rotas migrarem para interlocutores menos belicosos, enquanto o prestígio se esvaía no Egeu. As trirremes de ontem transformaram-se nas planilhas tarifárias de hoje; a coreografia, porém, persiste: dobrar sentenças estrangeiras com o peso de listas alfandegárias.
O custo tampouco mudou. Estudo recente do Banco Mundial sugere que cada ponto percentual de tarifa adicional em cadeias integradas reduz em até 0,8 % o fluxo de investimento cruzado nos dois anos subsequentes. A incerteza regulatória — sobretudo quando embalada como “tarifa pedagógica” — eleva spreads soberanos e faz disparar prêmios de seguro. Douglass North lembrou que instituições imprevisíveis ampliam custos de transação; aqui, a imprevisibilidade emana de um joystick aduaneiro que pretende mover sentenças à distância.
Há ainda o vértice constitucional. Ao consagrar a autodeterminação dos povos, o artigo 4.º da Carta de 1988 resguarda a magistratura nacional contra pressões externas, mesmo quando camufladas em códigos SH. Se decisões judiciais passarem a ser “corrigidas” por majorações tributárias, corremos o risco de corroer a separação de Poderes e de inaugurar precedentes que atores — talvez ainda mais abusivos — imitarão sem parcimônia.
A questão não é vilanizar potências, mas revisitar trilhas históricas. Atenas, “escola da Grécia”, quase faliu ao transformar a alfândega em vara de condão; qualquer metrópole contemporânea incorre em perigo análogo quando confunde pauta de importação com audiência de instrução. Tarifar para constranger togas pode parecer pragmático, mas compromete, a prazo indefinido, a autonomia do Estado-juiz.
Duas evidências emergem da experiência helênica. Primeiro: fechar portos — reais ou simbólicos — abre abismos que engolem não apenas o sancionado, mas também quem sanciona. Segundo: no tabuleiro global, altivez institucional e abertura diplomática valem mais que qualquer tarifa “civilizatória”. Quem preserva rotas comerciais francas e togas soberanas colhe dividendos de reputação que sobretaxas não compensam.
Se Atenas perdeu o compasso ao confundir alfândega com toga, cabe-nos aprender com o passado: manter o porto aberto ao mundo e a consciência erguida.
Bruno Dantas é ministro do TCU e ex-presidente da Corte
Artigo orignalmente publicado no Porta 247 em 10.07.2025