Por Milene Dias da Cunha.1
Após reiteradas decisões que versavam sobre a aplicação do art. 128, III da Lei nº. 5.810/94 (Regime Jurídico Único-RJU), no início do mês de abril/2014, o Plenário do Tribunal de Contas do Estado do Pará aprovou prejulgado nº 21, por meio de súmula2 com o objetivo de uniformizar a interpretação desde dispositivo legal. Assim, firmou-se o entendimento de que o tempo de serviço prestado em ente de direito privado pode ser computado para fins de aposentadoria e disponibilidade e não para concessão de adicional por tempo de serviço, conforme dispõe a interpretação literal do art. 70, §2º da referida lei.
Os processos que deram origem à súmula têm como natureza identificadora pertencerem aos atos de inativação sujeitos a registro e as decisões reiteradas versavam sobre a correta interpretação a ser dada ao referido art. 128, III, do RJU, que, ao omitir o qualitativo “público” do tempo de serviço, acarretou interpretações casuísticas para, extensivamente, conceder o adicional por tempo de serviço àqueles que averbassem tempo de serviço laborados em entes de direito privado.
Desta forma, diante da recente aprovação desse instrumento de orientação decisória do Eg. Tribunal de Contas do Estado do Pará, oportuna uma análise acerca do referido instituto, vez que se trata de decisão de grande relevância e que se mostra como meio orientador e uniformizador das decisões em processos de atos de aposentadoria, reforma e pensão, sujeitos a registro, oriundos da Administração Pública Estadual.
Em breve digressão histórica, repute-se que a preocupação em uniformizar as interpretações legais de modo a permitir a coerência entre as decisões de casos idênticos ou semelhantes pode ser percebida, no Brasil, com a criação dos assentos da Casa de Suplicação no período monarquista. Ideia originária de Portugal, os assentos foram extintos na república, mas a essência de sua finalidade permaneceu na faculdade dos tribunais firmarem prejulgados e súmulas, garantindo assim, maior previsibilidade e segurança nas decisões.
Evoluindo na análise histórica, é possível atribuir ao saudoso Ministro do Supremo Tribunal Federal Victor Nunes Leal a idealização do atual formato e finalidade das súmulas3, com base na jurisprudência predominante, materializada na Emenda Regimental daquela Suprema Corte em 1963, cuja essência foi transcrita no art. 479 do Código de Processo Civil. A proposta do Ministro Victor Nunes Leal foi criar um meio-termo entre o assento português e a instabilidade do livre convencimento jurisdicional, decorrente da perseverança esclarecida dos operadores do Direito. Citando Sérgio Ferraz, ressaltou que a súmula não devia ser “nem a inteligência perpétua da lei pelos assentos, nem a virtual inoperância dos atuais prejulgados, nem, por fim, a anarquia jurisprudencial”.
Ensinava o ilustre Ministro que “a Súmula foi criada para pôr termo a dúvidas. Se ela própria puder ser objeto de interpretação laboriosa, de modo que tenhamos de interpretar, com novas dúvidas, o sentido da Súmula, então ela perderá a sua razão de ser”. Assim, nas esclarecedoras lições do Ministro Nunes Leal, ao aprovar uma súmula, deve o Tribunal elaborar seu enunciado de modo a pôr fim a qualquer dúvida de interpretação enfrentada nos precedentes que lhe deram origem. Para seu criador, a súmula representa, portanto, puramente segurança jurídica.4
Ademais, oportuno aclarar que no sistema jurisdicional pátrio encontramos duas formas de uniformização das decisões, sendo elas as súmulas de jurisprudência predominante, cuja legitimidade de aprovação é de todos os Tribunais e as súmulas vinculantes, cuja legitimidade é exclusiva do Supremo Tribunal Federal.
Confrontando os precedentes que deram origem às súmulas de jurisprudência predominante e mesmo às súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal, é fácil constatar que essa Colenda Corte usa, como escopo de análise dos seus precedentes, o objeto das decisões e as circunstâncias juridicamente relevantes presentes nos casos fáticos, ou seja, a relevância dos precedentes reside nas suas concepções jurídicas e na sua importância para as decisões futuras, cujos juízo de valor são feitos pelo membros daquele colegiado. Nesse sentido, em análise de Direito Comparado, Benjamin Nathan Cardozo, juiz da Suprema Corte Americana entre 1932 e 1938, assim entendia a vínculo entre o precedente e a prestação jurisdicional: “Atrás dos precedentes se encontram as bases das concepções jurídicas, postulados do pensamento judicial, e ainda mais atrás estão os hábitos de vida, das instituições das sociedades, que são a origem daquelas concepções e que, por um processo de ação recíproca, são, por sua vez, modificados por elas”.
Essa parece ser a lógica utilizada até mesmo na aprovação das súmulas vinculantes, a despeito das críticas doutrinárias, as quais argumentam que a Carta da República requer um rigor formal específico nessa espécie, justamente por sua natureza cogente e vinculante. Assim, não raro, a Corte maior não se apega a esse rigor formal, como é facilmente percebido pela análise dos precedentes das súmulas vinculantes. Como exemplo, é possível citar a Súmula Vinculante nº 11 (uso de algemas). Apesar da Constituição Federal exigir reiteradas decisões, apenas um precedente embasou sua criação e seu enunciado partiu do princípio genérico da dignidade da pessoa humana para criar um enunciado amplo e genérico sobre o uso de algemas (objeto do precedente).
Por sua vez, as súmulas aprovadas com base na jurisprudência predominante não têm a força cogente das súmulas vinculantes, pois sua natureza é de um incidente processual, cujo objetivo é a equanimização e a racionalização quantitativa das decisões dos Tribunais, estabelecendo um princípio ou regra a ser utilizada nos casos posteriores em que o fato jurídico esteja em consonância com as circunstâncias fundamentais e essenciais da formação do julgado.
Igual efeito tem o prejulgado (súmula) aprovado pelo Tribunal de Contas do Estado. No entanto, não obstante a ausência de efeito vinculante, o Tribunal de Contas é o órgão competente para análise de mérito da legalidade dos atos de inativação dos servidores públicos do Estado. Assim, é certo que, ao aprovar uma súmula, está emitindo seu entendimento e orientando toda Administração Pública sob a sua jurisdição, sobre a correta interpretação a ser dada ao dispositivo legal.
Nessa vertente, forçoso reconhecer que o objeto da súmula recentemente aprovada pelo Tribunal de Contas do Estado do Pará é a inadmissibilidade de concessão de adicional por tempo de serviço exercido em ente de direito privado, vez que essa é a previsão expressa na legislação estadual e, por conseguinte, esse foi o objeto dos processos decididos e que ensejaram a aprovação da referida súmula.
Logo, de modo a evitar a negativa dos registros dos atos submetidos à apreciação desta Corte de Contas, é prudente à Administração Pública Estadual, em face de seu poder de autotutela, abrir processo administrativo para corrigir os atos que estão dando ensejo à pagamentos irregulares e por via de consequência, gerando prejuízo ao erário público. Por óbvio, tal ato administrativo deve respeitar o devido processo legal e observar, na análise de cada caso, a boa-fé subjetiva, o princípio da confiança e a decadência quinquenal se, a concessão indevida, tiver decorrido, exclusivamente, da interpretação equivocada da lei.
Notas de Rodapé:
1 – Milene Dias da Cunha é Conselheira Substituta do Tribunal de Contas do Estado do Pará.
2 – A competência da Corte de Contas para firmar prejulgado (súmula) está inserta no art. 12, I, “g” c/c art. 199 de seu Regimento Interno. Tecnicamente, o prejulgado existiu somente na Consolidação das Leis do Trabalho e legislação eleitoral e tinha natureza preventiva quanto à interpretação legal, sendo equivalentes à atual súmula vinculante, vez que condicionava a atuação dos juízos trabalhistas e eleitorais de instância inferior. Hodiernamente, inobstante o termo ainda ser usado em alguns Tribunais de Contas, sua essência é aquela dada à súmula, pelo que essa denominação é mais adequada, visto que a característica vinculante foi extinta.
3 – Na terminologia original, a expressão “Súmula” referia-se ao conjunto dos “enunciados”, publicada e atualizada periodicamente; a prática posterior consagrou também o uso de “Súmula” significando cada enunciado (Memória Jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal).
4 – Memória Jurisprudencial Ministro Victor Nunes, Supremo Tribunal Federal, Fernando Dias Menezes de Almeida, Brasília, 2006, pag. 31.
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