Fonte: Consultor Jurídico
O cenário pós-pandêmico tornou mais latente uma habilidade comumente exigida com frequência dos profissionais e das organizações atuais: a adaptabilidade. No caso das organizações, a adaptabilidade é a capacidade institucional de lidar com situações inéditas, imprevistas, ou com mudanças repentinas e adversas, superando dificuldades e ajustando-se ao novo ambiente, com pouco ou nenhum prejuízo às metas originalmente traçadas. Nesse sentido, adaptabilidade pode ser diferenciada de resiliência — palavra da moda que, em sua acepção oriunda da física, traz significado mais ligado à capacidade de retornar à configuração original, mesmo diante de eventos adversos.
A constatação da importância dessa habilidade para a sobrevivência pessoal, profissional e organizacional não é recente, tampouco ultrapassada. Seja pelas descobertas de Charles Darwin divulgadas em “A origem das espécies” (1859), seja pelas palavras do profeta Zaratustra — criadas pelo brilhante cérebro de Friedrich Nietzsche (1883) —, seja memorável atuação de Brad Pitt na versão cinematográfica do livro “Moneyball: The Art of Winning an Unfair Game” (2011), ter a capacidade de se adaptar é essencial para existir e se manter ativo. Mais do que isso, trata-se de habilidade que pode proporcionar não somente sobreviver como também ressignificar (outra palavra da moda) a própria existência, saindo diferente — eventualmente, mais forte – de efeitos imprevistos, danosos ou adversos.
Os Tribunais de Contas têm na Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2001) importante marco de um processo de modernização [1] e de constantes ajustes positivos como resposta às inovações da sociedade e da Administração Pública. A LRF começou a sinalizar a necessidade de adaptação: manter as funções já conquistadas e exercidas, mas também aproveitando novas oportunidades de atuação. Nesse sentido, as clássicas funções identificadas pela doutrina, extraídas do artigo 71, incisos e parágrafos da Constituição Federal (fixando as competências e poderes-deveres singulares do Tribunal de Contas da União, de observância compulsória pelos estados-membros [2]), merecem, também, atualização. Importante registrar que a expressão função é aqui utilizada em sentido impróprio, significando a forma ou meio de exercitar competências estabelecidas pelo ordenamento jurídico constitucional. Nessa acepção, a função é extraída das competências, a partir da interpretação de suas características, limites e possibilidades.
Com efeito, é possível fazer referência à conhecida classificação doutrinária que divide as funções dos Tribunais de Contas organizando-as em: fiscalizadora, julgadora, consultiva, sancionadora, corretiva, de ouvidoria [3]; e, ainda, normativa, pedagógica e reintegradora [4].
A função fiscalizadora (artigo 71, incisos III, IV e VI, da CF) compreende os processos de registro de atos de pessoal; a realização de auditorias e inspeções; análise de denúncias e representações; análise de licitações, contratos e instrumentos administrativos em geral; e a verificação da aplicação de quaisquer recursos públicos, inclusive renúncias de receitas. Consiste, basicamente, em capturar dados e informações, analisá-los, produzir um diagnóstico e formar um juízo de valor, que alimentará o processo decisório.
A função judicante (artigo 71, inciso II, CF), por seu turno, se refere ao julgamento das contas dos responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos, sob a forma de tomada ou prestação de contas, bem como as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário (tomada de contas especial).
A função consultiva (artigo 71, I, VII e XI, CF) se materializa principalmente na elaboração de parecer prévio, de caráter essencialmente técnico e informativo, acerca das contas prestadas, anualmente, pelo chefe do Poder Executivo a fim de subsidiar o julgamento a cargo da Casa Legislativa respectiva. Na mesma função se inclui, o exame, sempre em tese, de questionamentos realizados por autoridades legitimadas para formulá-los, a respeito de dúvidas na aplicação de dispositivos legais concernentes às matérias de competência dos tribunais de contas. Por fim, a função consultiva engloba a prestação de informações solicitadas pelo Legislativo ou por qualquer das respectivas comissões, ao Ministério Público, ao Poder Judiciário e às controladorias internas. Cuida-se de atividade de relacionamento e interação institucional de auxílio técnico, sem subordinação.
A função sancionadora (artigo 71, incisos VIII, IX e X, §§ 2º e 3º, CF) se manifesta na aplicação, aos responsáveis, das sanções previstas na legislação, em caso de ilegalidade ou de irregularidade devidamente tipificadas, bem como multa proporcional ao dano causado ao erário [5]. Diferentemente, a função corretiva consiste na emissão de determinação para cumprimento da lei, devendo ser observado o artigo 20 do Decreto-lei nº 4.657/1942 (Lindb); o exercício do poder geral de cautela, destinado a garantir a efetividade das decisões [6]; e a adoção do termo de ajustamento de gestão [7], mecanismo bastante eficaz de aprimoramento gerencial e de prevenção de irregularidades e danos ao erário.
A função de ouvidoria, de cunho relacional/interativo, consiste na possibilidade de os tribunais de contas receberem denúncias e representações relativas a irregularidades ou ilegalidades refere-se à fase postulatória do processo de contas. Essa atribuição tem fundamental importância no fortalecimento da cidadania e do controle social.
A função normativa decorre do poder normativo conferido aos tribunais de contas pela Constituição, por leis de caráter nacional (como a Lei Complementar nº 101/2000 — Lei de Responsabilidade Fiscal e, agora, a Lei nº 14.133/2021 — Nova Lei de Licitações e Contratos) e pelas respectivas leis orgânicas, que facultam a expedição de instruções e atos normativos, de cumprimento obrigatório pelos fiscalizados, sob pena de responsabilização, acerca de matérias de sua competência e a respeito da organização dos processos que lhe devam ser submetidos. Implicitamente, a função normativa decorre da utilização de conceitos abstratos, de princípios jurídicos ou da necessidade de dispor sobre organização e procedimento, respeitado o campo da reserva legal [8].
A função reintegradora, prevista no artigo 71, §3º, da CF, se refere à competência de imputar débito para fins de ressarcimento ao erário, nos casos de danos constatados e apurados.
A função pedagógica consiste na orientação sobre as melhores práticas de gestão, de caráter educativo, mediante a emissão de recomendação para adoção de providências; a edição de manuais e publicações; a realização de eventos e reuniões de trabalho, como audiências e mesas técnicas; a expedição de alerta, acerca de fatos que possam comprometer a boa gestão fiscal, o atendimento a deveres legais ou riscos às metas planejadas.
Simultaneamente ao já referido processo de modernização do controle externo, a edição de novos diplomas legislativos — como a Lindb, Lei 14.133/21 e as recentes alterações no regime jurídico da improbidade administrativa -também têm exigido dos Tribunais de Contas a busca de novas formas de desenvolver suas competências com o foco plenamente centrado em uma nova administração pública e em seu dever de priorizar o cidadão. Esse novo perfil de atuação se materializa em novas funções que possuem, em comum, o reconhecimento das políticas públicas como instrumentos essenciais da ação estatal, como já escrito nesta mesma coluna a respeito da evolução do Direito Administrativo:
“Tratam-se de ações governamentais processualmente estruturadas e juridicamente reguladas, em diversos níveis, com o envolvimento de diversos atores e instituições, por meio da utilização de variados métodos e estratégias. Reconhecer a centralidade da categoria políticas públicas implica compromisso com formular e propor soluções que contribuam para a efetividade dos direitos fundamentais e o alcance dos objetivos da República. Dessa forma, o Direito Administrativo passa a agregar também um papel de coordenador e viabilizador de soluções jurídicas, nos limites do quadro normativo. Não se trata de superação ou substituição das categorias clássicas (tais como discricionariedade, serviços públicos, poder de polícia etc.) mas, sim, de reconhecer suas limitações e a necessidade de construir novas ferramentas, inclusive com o apoio de outras ciências” [9].
Esse cenário nos impele no reconhecimento de novas funções atualmente exercitadas pelos Tribunais de Contas: articuladora, indutora, colaborativa e educadora.
A função articuladora consiste na coordenação de instâncias interinstitucionais de diálogo e atuação conjunta dos diversos atores envolvidos no ciclo das políticas públicas, com a finalidade de incrementar a eficiência e garantir a atuação coerente e confiável da Administração Pública. A reunião desses diversos atores cria uma agenda comum que facilita a construção de consensos e a harmonização de entendimentos, com ganho em resolutividade. O foco é não apenas a compreensão do que precisa e está sendo feito mas também ganhar segurança jurídica por meio do debate institucional qualificado e transparente, envolvendo a pactuação de ações ligados à atuação de cada um no ciclo das políticas públicas [10].
A função indutora, por seu turno, é verificada quando o Tribunal de Contas promove incentivos à criação de evidências para a melhoria do processo de escolhas públicas (fornece elementos para a tomada de decisão) e da eficiência nas entregas (políticas públicas); ao aprimoramento e à difusão de boas práticas, como a implantação e o desenvolvimento da transparência, da governança, do planejamento, da integridade e da gestão de riscos.
A função colaborativa, já descrita por Heloísa Godinho, Márcio Marinot e Wesley Vaz [11], ocorre quando o tribunal de contas, “mais do que orientar e informar por meio de decisões em processos de contas e de auditorias”, passa “a colaborar com a administração pública, em especial com o planejamento e execução das políticas e aquisições públicas, ao reunir, tratar e estruturar os dados e fornecer informações para a tomada de decisão nos mais variados setores governamentais”. Trata-se de função com característica diagnóstica, ou seja, ligada à produção de dados que colaborem com a administração. E arrematam os autores, no sentido de que “a atuação dos tribunais de contas voltada ao abastecimento de informações destinadas ao controle social, de forma simples e clara, está além das clássicas funções elencadas no art. 71 da CF/88, mas encontra respaldo na Lei n. 14.129/2021, conforme se detecta em seu art. 3º, especialmente nos incisos V a VII (incentivo à participação social no controle e na fiscalização da administração pública; dever do gestor público de prestar contas diretamente à população sobre a gestão dos recursos públicos; uso de linguagem clara e compreensível a qualquer cidadão)”.
Por fim, a função educadora — não inserida no contexto da função pedagógica, de índole processual — diz respeito à atuação dos tribunais por meio de suas escolas próprias, com vistas a difundir o conhecimento, treinar servidores e profissionalizar a gestão pública, capacitando não apenas agentes do controle mas também gestores, servidores e cidadãos. Vale mencionar que o treinamento não se enquadrava como obrigação legal, sendo classificado como uma função específica a partir da edição da Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos), que além de prever o controle externo das aquisições, trouxe novos contornos à atuação dos tribunais de contas, positivando o exercício de atribuições especiais já incorporadas ao cotidiano das funções controladoras, como a capacitação de servidores, jurisdicionados e contratantes com a administração, através das Escolas de Contas (artigo 173).
As novas funções se consolidaram com amparo implícito no rol de competências do artigo 71 da Constituição Federal. Se adaptar, nesse caso, é mais do que meramente sobreviver: é prestar serviços a cada dia mais relevantes e eficientes para tornar realidade as muitas promessas constitucionais.
Heloísa Helena Godinho, Conselheira Substituta do TCE-GO, e Fabrício Motta, Conselheiro do TCM-GO.
[1] O processo de reformulação e modernização dos tribunais de contas iniciou-se com o Promoex (Programa de Modernização do Controle Externo dos Estados e Municípios Brasileiros), de 2005 a 2013, e continua com o Programa QATC (Qualidade e Agilidade dos Tribunais de Contas) e com o MMD-TC (Marco de Medição do Desempenho), em sua 5ª etapa de execução (Ciclo 2022). Disponível em http://qatc.atricon.org.br/
[2] BRASIL, Supremo Tribunal Federal (STF). Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 849-8 – MT. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266565. BRASIL, Supremo Tribunal Federal (STF). Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.779-1 – PE. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266757.
[3] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 30. ed. São Paulo: Forense, 2017.
[4] MOUTINHO, Donato Volkers. Contas dos governantes : apreciação das contas dos chefes de Poder Executivo pelos tribunais de contas do Brasil. 1. ed. São Paulo: Blucher Open Access, 2020.
[5] Sobre esse tema, confira-se artigo publicado neste mesmo espaço: A competência para execução de multas aplicadas pelos Tribunais de Contas. Conjur, 16/11/2021. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-set-16/interesse-publico-competencia-execucao-multas-aplicadas-pelos-tcs
[6] BRASIL, Supremo Tribunal Federal (STF). Mandado de Segurança nº 33.092 – DF. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=9133937 e Mandado de Segurança nº 24.510–7 – DF. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=86146.
[7] Ver sobre o tema FERRAZ, Luciano. Termo de Ajustamento de Gestão (TAG): do sonho à realidade. Revista Brasileira de Direito Público. Belo Horizonte, Ano 8, nº 31, out/dez. 2010. FERRAZ, Luciano. Novos Rumos para o Controle da Administração Pública. Tese de Doutoramento, UFMG, 2003.
[8] MOTTA, Fabricio. Função normativa da Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2007.
[9] https://www.conjur.com.br/2021-fev-11/interesse-publico-articulacao-instrumento-direito-politicas-publicas
[10] https://www.conjur.com.br/2021-fev-11/interesse-publico-articulacao-instrumento-direito-politicas-publicas
[11] GODINHO, Heloísa Helena Antonácio M.; MARINOT, Márcio Batista; VAZ,Wesley. Impactos da Lei do Governo Digital no controle externo. In: MOTTA, Fabrício; VALLE, Vanice Regina Lírio do (Coords.). Governo digital e a busca por inovação na Administração Pública: A Lei nº 14.129, de 29 de março de 2021. Belo Horizonte: Fórum, 2022. p. 221-238. I