Fabrício Motta
Em julgamento recente, o Supremo Tribunal Federal voltou a analisar o contorno jurídico das relações entre órgãos de controle interno e os Tribunais de Contas, responsáveis pelo controle externo ao lado do Poder Legislativo. Tratava-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.705, por meio da qual o governador do estado de Santa Catarina se insurgiu contra o artigo 61, inciso I, da Lei Complementar estadual nº 202, de 2000, em sua redação original, que estabelecia o seguinte:
“Art. 61. No apoio ao controle externo, os órgãos integrantes do sistema de controle interno deverão exercer, dentre outras, as seguintes atividades:
I – organizar e executar, por iniciativa própria ou por determinação do Tribunal de Contas do Estado, programação de auditorias contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial nas unidades administrativas sob seu controle, enviando ao Tribunal os respectivos relatórios”.
A questão principal – optando por evitar comentários sobre as características e limites da impugnação, além de aspectos eminentemente processuais – reside justamente na parte do texto que permite ao Tribunal de Contas determinar aos órgãos do sistema de controle interno a programação e realização de auditorias. A razão essencial da impugnação seria a ausência de hierarquia entre os sistemas de controle – interno e externo –, ligada à separação e harmonia entre os poderes.
A ação foi julgada parcialmente procedente, “declarando a nulidade parcial, com redução de texto, do artigo 61, inciso I, da Lei Complementar estadual nº 202/2000, para que se retire do dispositivo a expressão por determinação do Tribunal de Contas do Estado”. Destaco alguns trechos das razões de decidir expostas no voto do relator, ministro André Mendonça:
“[…] o texto constitucional reserva ao sistema de controle externo (art. 71 a 73) e ao sistema de controle interno (art. 74), regras, procedimentos, órgãos e instituições próprias, determinando a cada qual o exercício de suas respectivas atribuições, a serem exercidas dentro de suas correspondentes áreas de atuação. Há, portanto, coexistência e cooperação – não hierarquia – entre os sistemas externo e interno de controle.
- A relação horizontal estabelecida entre os sistemas de controle interno e externo deriva da própria cláusula de freios e contrapesos que, por sua vez, é corolário do princípio da separação de poderes. Tal conclusão é facilmente verificável a partir da leitura do art. 74, §1º, da Constituição, que estabelece que “[o]s responsáveis pelo controle interno, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade, dela darão ciência ao Tribunal de Contas da União, sob pena de responsabilidade solidária”.
- A obrigatoriedade de dar ciência adquire, aqui, um duplo significado: (i) primeiro, revela o dever de cooperação e harmonia entre os sistemas interno e externo de controle; e (ii) segundo, sinaliza a autonomia (ou autogoverno) que cada sistema possui para realizar, por seus próprios mecanismos internos, as medidas (preventivas e corretivas, no controle interno; fiscalizatórias e sancionatórias, no controle externo) que devem ser feitas.
- Ao dar ciência ao Tribunal de Contas, os responsáveis pelo controle interno municiam os órgãos responsáveis pelo controle externo de informações que lhe propiciam o exercício de suas funções institucionais. Assim, novamente, a postura entre os sistemas de controle é nitidamente colaborativa e não hierárquica, respeitando-se o princípio da separação de poderes (art. 2º da Constituição) e o sistema de freios e contrapesos” (destaquei. ADI 5.705/SC, relator: ministro André Mendonça, julgamento virtual finalizado em 06.06.2025 (sexta-feira), às 23:59)
O Conselho Nacional de Controle Interno (Conaci) foi admitido como amicus curiae e, em sua manifestação, consignou:
“Se aos órgãos incumbidos do exercício das funções de controle interno se espera que ostentem certo grau de autonomia, até mesmo em relação à chefia da própria esfera de Poder em que se encontram inseridos, como, por exemplo, os controladores-gerais em relação aos chefes do Poder Executivo do respectivo ente estatal (embora aí se tenha, de fato, uma relação hierárquica), o que dirá em relação a órgãos de outros poderes com os quais não guardam qualquer vínculo de subordinação […] Não cabe ao Tribunal de Contas ditar regras de funcionamento dos órgãos de controle interno ou imputar-lhe atribuições, ao seu alvedrio”.
É necessário, se percebe, compreender a conformação constitucional do controle interno constante do artigo 74 da Constituição da República e cotejá-la com as competências dos Tribunais de Contas, constantes do artigo 71, em especial:
“Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de controle interno com a finalidade de:
I – avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União;
II – comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado;
III – exercer o controle das operações de crédito, avais e garantias, bem como dos direitos e haveres da União;
IV – apoiar o controle externo no exercício de sua missão institucional.
§1º. Os responsáveis pelo controle interno, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade, dela darão ciência ao Tribunal de Contas da União, sob pena de responsabilidade solidária.”
Espaço próprio e autônomo
Controle interno, sob o aspecto subjetivo, designa as estruturas incumbidas de realizar, em harmonia com os órgãos de controle externo (Tribunais de Contas e Poderes Legislativos), a fiscalização financeira, operacional e patrimonial da administração pública em sentido amplo (artigo 70 c/c 74). Como anota Rodrigo Pironti, “o controle interno (referido sem a expressão ‘sistema’ que o antecede) é parte integrante do sistema de controle interno, possuindo atuação técnica limitada a depender da competência que detém e estrutura que integra […] representa a especialização do controle administrativo, em que o poder de fiscalização é exercido pela própria Administração Pública”. Já os Tribunais de Contas, além da relevante atribuição de coadjuvar a parcela de controle externo exercido pelo Poder Legislativo, possuem competências constitucionais próprias e autônomas, essenciais ao Estado Democrático de Direito (artigos 71 e 72 da Constituição).
A leitura do artigo 74 em sua inteireza permite concluir que a competência para auxiliar o controle externo — notadamente, os Tribunais de Contas — não define o controle interno em toda a sua complexidade. Não há, de fato, relação hierárquica entre Tribunais de Contas e órgãos de controle externo. Ao comentar a organização do controle das licitações e contratos em linhas de defesa, feitas por intermédio da Lei nº 14.133/21, anotei juntamente com Luciano Ferraz que a nova lei teve o mérito de colocar em evidência a ausência de subordinação hierárquica e também de evitar superposição de esforços, ações contraditórias em prol de uma atuação articulada voltada à efetividade na busca do interesse público. Concluímos:
“O enquadramento dos Tribunais de Contas na terceira linha junto com o órgão central de controle interno, possui o mérito de relembrar que, na sistemática constitucional, os órgãos centrais de controle interno de cada Poder possuem espaço próprio e autônomo de atuação, conquanto o desenho mais adequado tivesse sido prever os Tribunais de Contas como quarta linha de defesa”.
A finalidade de “apoiar o controle externo no exercício de sua missão institucional” (artigo 74, IV), convive com outras três finalidades dispostas nos incisos anteriores. A competência para realizar as atividades — buscando atingir as finalidades — descritas nos incisos I, II e III do artigo 74 é própria do controle interno e envolve espaço próprio de normatividade, sujeito somente à hierarquia existente no âmbito do ente da federação respectivo. Em outras palavras, existe hierarquia somente entre o Executivo e respectivo controle interno, como anota o Conaci.
No plano constitucional, a competência para que os Tribunais de Contas expeçam determinações se liga às providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade, após assinar prazo para atuação do órgão ou entidade (artigo 71, IX da Constituição). Nesse recorte específico, a expedição de determinação aos órgãos de controle interno em nada discrepa daquelas que podem ser dirigidas aos demais órgãos e entidades, no caso de ilegalidades verificadas no exercício das competências dos Tribunais de Contas.
Não há hierarquia entre Tribunal de Contas e controles internos, existindo relação jurídica que pode admitir o endereçamento de determinações tão somente no que se refira às atividades de apoio referidas no artigo 74, IV, competência normativa implícita do controle externo. A interpretação do que pode ser determinado ao controle interno pelo Tribunal de Contas pode ser feita, inicialmente, por exclusão: as atividades ligadas às finalidades constantes do artigo 74, incisos I, II e III são próprias do controle interno, que se respalda na autonomia do ente da federação para disciplinar normativamente sobre a atividade. A limitação da expedição de determinações às ilegalidades (nos termos do comentado artigo 71, IX) é reforçada pelo dever jurídico atribuído aos responsáveis pelo controle interno de darem ciência ao Tribunal de Contas ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade, sob pena de responsabilidade solidária (artigo 74, §1º).
Cooperação
O Tribunal de Contas pode expedir determinações ao controle interno quando constatada ilegalidade — por exemplo, pode determinar a instauração de tomada de contas especial diante da omissão no dever de prestar contas. Não pode determinar a realização de auditoria se ainda não foi constatada qualquer irregularidade ou ilegalidade (a distinção pode ser abordada em outra oportunidade). Nessa mesma linha, é possível que o Tribunal de Contas expeça determinação diante de ilegalidade que não se enquadre nos critérios de oportunidade, materialidade, relevância e risco que devem orientar a seleção de objetos e ações de controle de maneira racional (artigo 170 da Lei 14.133/2021). O desvio de recursos públicos em montante aquém do valor de alçada estabelecido pela Corte de Contas, por exemplo, continua ilegal e deve ser objeto de atuação do controle interno.
Em linhas gerais, respeitados e entendidos os limites da ADI, a decisão do STF reforça a complementaridade e sistematicidade do sistema de controle da administração pública. A cooperação é um dos instrumentos de articulação e os Tribunais de Contas têm exercido, de forma crescente, sua função articuladora: “consiste na coordenação de instâncias interinstitucionais de diálogo e atuação conjunta dos diversos atores envolvidos no ciclo das políticas públicas, com a finalidade de incrementar a eficiência e garantir a atuação coerente e confiável da Administração Pública” [4]. Somente com articulação entre todas as instituições de controle — dentre elas, Tribunal de Contas e controle interno — será possível buscar efetividade do próprio controle e melhorar as entregas de serviços e políticas públicas para a população.
Fabrício Motta é conselheiro do TCM-GO e diretor de Relações Jurídico-Institucionais da Atricon
Artigo originalmente publicado no portal Conjur em 03.07.2025