Inaldo da Paixão Santos Araújo*
A Sétima Arte é quase sempre uma experiência intensa, porque abarca todas as outras artes em um mesmo campo imagético, que nos faz viajar na escura sala de exibição. Assistir a um filme é, portanto, juntar as vivências das películas que já contemplamos, captando cenas da arquitetura, da escultura, da pintura, da música, da literatura e da dança. Tudo cabe no cinema, até os quadrinhos, e, mais ainda, quando atravessamos a história dos dramas e comédias de nossas vidas, passando a viver o presente por meio da imagem projetada na tela. No instante mágico da exibição, dois filmes rodam paralelamente no transcurso do passado, do presente e do futuro, tempos que se desdobram em duas ações: projetar e projetar-se. Essa reflexão me veio quando entrei, no último dia 4 de março, no Cine Glauber Rocha para assistir ao lançamento do filme “A Voz de Ruy – O Arquiteto da República”.
Voltar ao cinema que traz o nome do saudoso cineasta baiano é sempre um prazer, principalmente porque foi o primeiro cinema que conheci quando era menino. Na época, chamava-se Cine Guarany. E a memória me fez sentir o cheiro daquele local nos anos 70 – o milho explodindo na panela e virando pipoca, banhada em manteiga e coco ralado, as cestas dos baleiros repletas de balas de hortelã e tutti frutti, o lanterninha salvador, os cartazes coloridos que anunciavam em letras garrafais os filmes em exibição e as próximas estreias.
Caindo no filme do presente, entro numa das salas do cinema, hoje totalmente reformado. As luzes se apagam. E confesso: o que vi superou as minhas expectativas. Um audiovisual denso, de uma hora e meia, conta a história de uma das personalidades mais importantes do Brasil. A saga de um homem de fé e coragem, que lutou com todas as forças para ver brotar os ideais republicanos. As imagens de época mostram Ruy Barbosa em suas campanhas, na vida em família, na labuta ferrenha durante as madrugadas. Um lutador tenaz, perseverante, mas, sobretudo, dedicado ao trabalho e apaixonado por ele.
O audiovisual se inicia com cenas do fatídico dia 8 de janeiro de 2023, quando extremistas de direita invadiram a sede dos Três Poderes e destruíram diversas obras de arte. Entre as peças, estava o busto de Ruy Barbosa, que foi danificado pelos vândalos depois de invadirem o Supremo Tribunal Federal (STF). A mossa deixada na fronte da imagem do Águia de Haia não poderia ser mais simbólica. Parte da dilapidação do patrimônio público atingiu justamente o ícone que tanto se empenhou na construção do caminho da democracia e da liberdade. Até hoje me pergunto se, na ira que se instaurou no “Hall dos Bustos”, o ato de vandalizar a imagem de Ruy foi deliberado ou se os destruidores sabiam quem ela representava. O STF decidiu pela manutenção da “cicatriz”, como um registro histórico do desrespeito aos ideais democráticos.
Enquanto o documentário se desenrola, diante da grandiosidade do personagem, percebo que tudo aquilo que falam sobre Ruy Barbosa será pouco, tendo em vista a envergadura do nome e o que ele fez pela democracia brasileira. A vida de Ruy se confunde, por exemplo, com um dos momentos mais importantes da nossa história, que é a transição da Monarquia para a Primeira República. Adiante, mais luta e trabalho: Ruy se empenha nas campanhas abolicionistas junto com grandes expoentes da causa, a exemplo do poeta Castro Alves, de Luiz Gama, Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, Aristides Lobo e André Rebouças. Outras facetas do incansável jurista não tardam a se revelar à medida que o filme avança.
E agora vemos um Ruy que se torna o mentor da reforma do ensino, coautor da Constituição Brasileira, criador dos Tribunais de Contas (do meu, do seu, do nosso Tribunal de Contas), defensor da igualdade entre as nações e do federalismo. Com a firmeza de suas convicções, posicionou-se contra o militarismo, no comando das nações, defendendo o poder civil e o modelo de República com democracia por meio dos três poderes: Judiciário, Legislativo e Executivo. Entre os ilustres especialistas na vida de Ruy Barbosa, o professor Edvaldo Brito, na sua fala final, destaca que o legado do jurista está fundamentado em três pilares: Federalismo, República e Democracia.
Porém, entre tudo a que assisti, o que mais me marcou foi a paixão de Ruy por Maria Augusta, sua esposa. Prova provada de que sem uma grande paixão nada somos.
Em conclusão, o que me veio à mente quando subiram os créditos e as luzes se acenderam na sala do Glauber Rocha foi que a história de Ruy é um filme sem fim. Sim, porque todo e qualquer ser humano que deixe um importante legado terá as suas ideias perpetuadas. E isso, a meu ver, tem a ver com a paixão pelo que se faz. Somente as pessoas apaixonadas podem deixar grandes obras. A vida de Ruy Barbosa é um exemplo de paixão pelo direito, pela família, pelos ideais libertários e republicanos.
Essa noção de ideais perenes está intimamente ligada ao que disse a ministra Rosa Weber em seu discurso por ocasião das celebrações pelos 100 anos de falecimento do eminente jurista baiano. Parafraseando o título “O Sol se apagou”, dado por um jornal da época, anunciando a morte de Ruy, em 1923, ela afirmou:
“O sol não se apagou (…) Segue fulgurante. Que inspirados em Ruy e louvando sua memória, prossigamos sempre, frente a qualquer aventura antidemocrática, com a mesma determinação altiva da águia que imobiliza a serpente”.
Aproveito o espaço para parafrasear o sambista Nelson Cavaquinho: “O Sol há sempre de brilhar mais uma vez”, pois toda vez que Ruy Barbosa for lembrado, em um livro, em uma revista em quadrinhos, em um simpósio, em um filme, o Sol estará mais vivo do que nunca.
* Inaldo da Paixão Santos Araújo é mestre em Contabilidade, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado da Bahia (TCE-BA), professor da Universidade do Estado da Bahia, vice-presidente do Instituto Rui Barbosa, escritor.