João Antonio
“A solidariedade, longe de ser uma atitude de caridade isolada, deve ser vista como uma ferramenta política e social capaz de enfrentar desigualdades e promover oportunidades reais.”
A humanidade tem vivido um constante embate entre duas forças que remam politicamente em rumos opostos: individualismo competitivo e a solidariedade. Essa dualidade reflete-se tanto em atitudes cotidianas quanto em ideologias predominantes. Enquanto a solidariedade defende o valor da cooperação e do apoio mútuo, o individualismo, por sua vez, exalta a autonomia e a autossuficiência como virtudes centrais no processo de construção do mérito. Dentro desse contexto, uma parte significativa da sociedade acredita que o sucesso pessoal, seja ele expresso em riqueza, prestígio ou reconhecimento, é exclusivamente fruto do esforço individual. Essa visão, que ignora as desigualdades estruturais, permeia tanto discursos políticos quanto práticas sociais.
No campo ideológico, o liberalismo econômico enxerga o desenvolvimento social como um reflexo da produção de riquezas. Para os liberais, essa produção está intrinsicamente ligada à competitividade e à liberdade econômica, que são vistas como motores do progresso. Dentro dessa lógica, a busca pelo lucro e a concorrência entre indivíduos ou empresas seriam os principais impulsionadores do avanço coletivo. Entretanto, tal ideologia frequentemente interpreta a solidariedade de forma reducionista, equiparando-a a simples ações de caridade, ignorando seu potencial transformador e estrutural.
Uma das consequências mais marcantes dessa perspectiva liberal é a supervalorização da meritocracia, um conceito que parte da premissa de que todos possuem as mesmas oportunidades iniciais e que, portanto, o sucesso seria uma questão de mérito pessoal. No entanto, essa ideia ignora as profundas desigualdades sociais que moldam as condições de partida de cada indivíduo. Assim, enquanto uns têm acesso a educação de qualidade, redes de apoio e estabilidade financeira, outros enfrentam condições adversas desde o nascimento. A meritocracia, nesse sentido, transforma-se em uma justificativa conveniente para perpetuar privilégios e deslegitimar demandas por igualdade.
Essa narrativa meritocrática transfere ao indivíduo toda a responsabilidade por seu destino, especialmente em relação ao fracasso. Em um sistema que glorifica o sucesso como sinônimo de esforço, ser pobre ou enfrentar dificuldades financeiras é frequentemente associado à falta de empenho ou capacidade. Esse julgamento não apenas desumaniza os menos favorecidos, mas também gera um peso psicológico significativo, levando muitas pessoas a internalizarem a culpa por circunstâncias que estão fora de seu controle. A pobreza, nesse contexto, é tratada como uma falha pessoal, e não como resultado de desigualdades estruturais.
Portanto, é essencial questionar essa lógica que individualiza o fracasso e romantiza a competição desenfreada. Para construir uma sociedade mais justa, é necessário reconhecer que o sucesso individual está profundamente interligado a fatores coletivos e estruturais. A solidariedade, longe de ser uma atitude de caridade isolada, deve ser vista como uma ferramenta política e social capaz de enfrentar desigualdades e promover oportunidades reais. A valorização da cooperação, aliada à crítica de sistemas que perpetuam a exclusão, é o caminho para um desenvolvimento verdadeiramente inclusivo e sustentável.
O embate entre solidariedade e individualismo competitivo reflete diretamente no debate sobre o papel do Estado. Para o neoliberalismo, a redução da atuação estatal é fundamental para permitir que o mercado assuma o protagonismo na produção de riquezas e na busca pelo lucro. Acredita-se que, com menos regulação e intervenção, a competitividade e a liberdade econômica se traduziriam em maior eficiência e progresso. Contudo, essa perspectiva privilegia interesses privados e ignora as desigualdades estruturais que impedem a ampla participação da sociedade nos benefícios gerados pelo esforço coletivo de um povo. A desvalorização do papel do Estado, nesse contexto, resulta na perpetuação de exclusões e na falta de mecanismos que garantam o bem-estar coletivo.
Em contrapartida, os defensores do Estado de Bem-Estar Social — aqueles que advogam pelo socialismo com democracia — propõem um modelo que transcende a polarização entre estado mínimo e estado máximo. Para eles, a prioridade deve ser a construção de um Estado capaz de combater desigualdades, promover a justiça social e garantir o desenvolvimento integral dos indivíduos. Esse Estado, além de atuar como regulador, deve assumir o papel de organizador da solidariedade entre as pessoas, canalizando os recursos produzidos coletivamente para atender às necessidades da maioria. Assim, a riqueza gerada, incluindo a transformação econômica dos recursos naturais, deve ser vista como um patrimônio coletivo e direcionada ao desenvolvimento sustentável e inclusivo, reforçando a ideia de que o progresso real, fruto do esforço coletivo, deve ter como objetivo o desenvolvimento da vida no planeta Terra, e não o lucro de poucos.
João Antonio é conselheiro do TCM-SP e vice-presidente da Atricon