Sugestões aos novos governantes

Sugestões aos novos governantes

De Cezar Miola, Conselheiro do TCE-RS

Era o ano de 2012. Passadas as eleições municipais, recebi, na presidência do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul, diversos prefeitos então eleitos. Além das protocolares visitas de cortesia, alguns pareciam buscar uma espécie de “receita” para o êxito do futuro mandato.

Lembro, particularmente, que num desses encontros com esperançosos interlocutores veio à tona a obra “Conselho aos governantes”. De fato, no livro há sábias reflexões de grandes pensadores sobre a política e a gestão, embora estejam a demandar, em determinados pontos, criteriosa ponderação e contextualização, considerando também os séculos que nos separam, p. ex., de Platão, Maquiavel, Marquês de Pombal, entre outros.

De minha parte, sem a menor pretensão de oferecer conselhos, mas revisitando a própria vivência, em administrações municipais e nas diferentes funções no TCE-RS, aproveitava esses encontros para conhecer as preocupações trazidas e, humildemente, compartilhar algumas experiências e aprendizados, recolhidos nos ambientes da gestão e do controle.

Assim é que, agora, distanciado fisicamente em razão da covid-19, me atrevo a, numa espécie de imaginário diálogo com as novas prefeitas e os novos prefeitos, colocar modestas sugestões a quem tomará posse no dia 1° de janeiro. São anotações despretensiosas, que até poderão fazer o eventual leitor lembrar do antológico Conselheiro Acácio, de Eça de Queirós. Mas, e já então me remetendo a Nelson Rodrigues, há situações em que se justifica insistir com o “óbvio ululante”.

Por outro lado, mesmo elementares, sua implementação não se mostra fácil, exigindo determinação, espírito público, razoabilidade, qualificação, resiliência, serenidade, construção de consensos. O certo é que, se práticas assim se materializarem por este grande e diverso território, inúmeros serão os ganhos para a população:

– cumprir e fazer cumprir a Constituição e as leis, que é o básico;

– exercer o mandato respeitando a independência e harmonia em relação aos demais poderes e a autonomia dos órgãos;

– liderar pelo exemplo;

– considerar que, na definição das prioridades, há uma estabelecida como “absoluta” já pelos próprios constituintes de 1988 (art. 227): a criança, o adolescente e o jovem;

– manter o foco nas políticas públicas de interesse local, a partir do conteúdo dos principais planos, como os de educação (sabendo-se que ainda há muito por fazer para se garantir a universalização do atendimento, a qualidade e a equidade na educação básica), saúde, meio ambiente, saneamento, resíduos sólidos, desenvolvimento, mobilidade, estabelecendo metas e indicadores e avaliando os resultados;

– internalizar, no plano local, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), das Nações Unidas;

– radicalizar na transparência, porque a publicidade é a regra, o sigilo, a exceção;

– valorizar o planejamento, que é determinante para o setor público, e elaborar orçamentos realistas, com equilíbrio entre receitas e despesas;

– administrar com base em evidências, aproveitando a experiência de outros líderes e as boas práticas já comprovadas de gestão e de governança;

– investir na profissionalização dos quadros de pessoal, na formação continuada e na valorização das carreiras, também contando o apoio das escolas de contas e de governo;

– destinar os cargos em comissão exclusivamente para funções de direção, chefia e assessoramento, prestigiando critérios de recrutamento que conciliem a discricionariedade de nomear com a impessoalidade e prestigiem as habilidades e competências dos agentes;

– observar os limites de gastos com pessoal e zelar pela sustentabilidade dos regimes próprios de previdência;

– fortalecer o controle interno e estimular o controle social, sobretudo através dos sítios na internet e das redes sociais;

– conhecer as normativas e as orientações do Tribunal de Contas, adotar as medidas corretivas e preventivas apontadas nos seus relatórios de auditoria e formular consultas para as questões mais complexas, valendo-se da função pedagógica exercida pelos TCs brasileiros;

– instituir e cobrar todos os tributos da competência própria, com bases de cálculo realistas;

– fixar critérios claros e objetivos para as eventuais renúncias fiscais, que deverão ser continuamente avaliadas quanto aos reais benefícios ao conjunto dos munícipes;

– cultivar uma relação dialógica com a cidadania, utilizando-se da ouvidoria e de outros mecanismos de participação, proteção e defesa dos usuários dos serviços públicos;

– estabelecer parcerias com organizações da sociedade civil, quando amparadas em lei e em sintonia com os princípios constitucionais;

– considerar que a motivação deve presidir cada ato administrativo, haja vista que a análise das “consequências práticas da decisão”, além de ser um dever para o controlador, se impõe, primeiramente, ao próprio gestor, na sua tomada de decisão;

– lembrar que “dizer não” é inerente ao ofício, tanto para a preservação do interesse público quanto no resguardo pessoal;

– ter presente que o regime republicano implica responsabilidade, e que quem governa não é dono; administra em nome do titular do poder: o povo.

Certamente haveria mais verbos a acrescentar nessa simples e ao mesmo tempo desafiadora lista. Enfim, a legítima expectativa é de que o múnus outorgado se volte a concretizar os objetivos fundamentais da República, verdadeira síntese do pacto civilizatório que consolidamos já na “página inicial” da Constituição (art. 3º). Subjacente aos grandes propósitos ali assentados, e como pressuposto para a sua efetivação, o compromisso com a vida, que deve unir governos e sociedade. Vida, com dignidade, para todos os brasileiros, distribuídos nos nossos mais de 5.500 municípios.

 

*Cezar Miola, conselheiro do Tribunal de Contas do RS