Supremo Acerto de Contas (Parte 2)

Hoje, o segundo capítulo do ensaio “Supremo Acerto de Contas: a hermenêutica constitucional que consolida os Tribunais de Contas como guardiões da República”.

AUTONOMIA DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

Algumas indagações antecedentes. Os Tribunais de Contas constituem um Poder autônomo? Integram o Poder Judiciário? Fazem parte do Poder Legislativo? Ou são instituições autônomas sem vinculação com quaisquer dos Poderes?

A arquitetura institucional dos Tribunais de Contas é tema afeito à sua própria natureza jurídica. Não é raro deparar-se com posicionamentos imprecisos sobre a real topografia constitucional dos Tribunais de Contas em relação aos Poderes da República. O nome “tribunal”, a competência para “julgar contas” e a equiparação de seus membros (Ministros, Conselheiros e Substitutos) ao regime jurídico dos membros do Judiciário são elementos que podem induzir os mais apressados à conclusão equivocada de que os Tribunais de Contas seriam órgãos do Poder Judiciário. 

Há também os que inserem os Tribunais de Contas no âmbito do Poder Legislativo, partindo, igualmente, de premissas superficiais. Alegam que os principais artigos que disciplinam os Tribunais de Contas na Constituição Federal – artigos 70 a 75 – estão inseridos no Capítulo que trata do Poder Legislativo, logo seriam órgãos deste Poder. Em reforço, recorrem a uma exegese míope do caput do artigo 71, que, ao consignar a titularidade do Controle Externo ao Poder Legislativo e, ao mesmo tempo, assinalar as competências do Tribunal de Contas da União, dispõe: “O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:”. Para alguns, a expressão “com o auxílio” teria o condão de reduzir esses Tribunais à condição de órgãos do Legislativo e, pior, numa posição de subalternidade a esse, porquanto seria dele um mero auxiliar. Uma parcela desses posicionamentos costuma camuflar uma ideia depreciativa em relação ao papel dos Tribunais de Contas.

Carlos Ayres Britto desnuda esses verdadeiros sofismas: “Quando a Constituição diz que o Congresso exercerá o controle externo ‘com o auxílio do TCU’, tenho como certo que está a falar de ‘auxílio’ do mesmo modo como a Constituição fala do Ministério Público perante o Judiciário. (…) Uma só função, com dois diferenciados órgãos a servi-lo. Sem que se possa falar de superioridade de um perante o outro”. Nesta  mesma senda é a posição majoritária da doutrina, a exemplo de Celso Antônio Bandeira de Melo, Odete Medauar, Eduardo Gualazzi, José Afonso da Silva e Marçal Justen Filho.

O STF, já em 1984, assinalou: “O Tribunal de Contas não é preposto do Legislativo. A função que exerce recebe diretamente da Constituição Federal, que lhe define atribuições” (Rep. 1.179 – ES). Esse posicionamento do STF foi firmado ainda sob a vigência de ordenamento jurídico anterior à promulgação da CF de 1988, cujo advento só fez ampliar e fortalecer as atribuições dos Tribunais de Contas.

Sob a vigência da nova Carta, a jurisprudência do STF consolidou-se, na mesma senda, com vistas a reconhecer a plena autonomia aos Tribunais de Contas perante os demais Poderes da República, atuando como uma espécie de órgãos de permeio (nem acima, nem abaixo; mas ao lado dos clássicos Poderes), a partir de uma legitimidade extraída diretamente do Texto Constitucional. Posição, diga-se, semelhante à arquitetura institucional conferida ao Ministério Público. Essa autonomia se manifesta, por exemplo, por meio da capacidade de autogoverno (autonomia administrativa), da iniciativa privativa de leis sobre suas competências, processos e organização, da sua independência financeira e orçamentária, da equiparação de seus membros ao regime jurídico do Judiciário, além da previsão de quadro próprio de pessoal.

É essa a melhor exegese que se extrai de uma interpretação lógica, sistemática e teleológica dos dispositivos constitucionais, afirmados pelos artigos 31, 71 a 75, sem olvidar do artigo 73 da Lei Maior que manda aplicar aos Tribunais de Contas, no que couber, o disposto no seu artigo 96, que trata justamente das balizas essenciais da autonomia do Poder Judiciário. O precedente abaixo ilustra bem a posição do STF:  “As Cortes de Contas seguem o exemplo dos tribunais judiciários no que concerne às garantias de independência, sendo também detentoras de autonomia funcional, administrativa e financeira, das quais decorrem, essencialmente, a iniciativa reservada para instaurar processo legislativo que pretenda alterar sua organização e funcionamento, conforme interpretação sistemática dos arts. 73, 75 e 96, II, d, da Constituição Federal (ADI 4.418).

Valdecir Pascoal – Conselheiro do TCE-PE