Ao longo das próximas quinzenas, publicaremos neste espaço os principais pontos de um ensaio que escrevi para o livro “Supremos Acertos: avanços doutrinários a partir da jurisprudência do STF”, da Editora Casa do Direito, lançado no final de 2022 e organizado por professores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). No texto, trato das principais decisões do STF que, nos últimos 34 anos, alçaram os Tribunais de Contas à condição de verdadeiros guardiões da República e da boa gestão, sem prejuízo de apontar, ao final, desafios e os riscos de eventuais retrocessos jurisprudenciais. Hoje, segue o Capítulo 1: “Dois filhos de Rui Barbosa”.
DOIS FILHOS DE RUI BARBOSA
O ano de 2021 foi emblemático para a história republicana brasileira. O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal de Contas da União (TCU) celebraram 130 anos como instituições de estatura e matriz constitucional. É verdade que o TCU, por meio do Decreto 966–A, havia sido criado, formalmente, um ano antes, em 1890, ainda no governo provisório do Marechal Deodoro da Fonseca. No entanto, o órgão nem chegou a funcionar de fato. A sua história como instituição incumbida do controle externo das contas públicas federais começa, para valer, em 1891, quando passou a angariar, ao lado do STF, o status de órgão constitucional.
Após a criação do TCU, paulatinamente, o novo modelo federativo levou à instituição daquilo que se convencionou chamar de sistema de controle externo, a partir do surgimento dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal e, em alguns Estados e Municípios, da instalação de Tribunais de Contas Municipais.
As duas instituições, portanto, o STF e o TCU, nascem no alvorecer da República, passando a desempenhar relevantes atribuições constitucionais. O STF, com a missão de garantir a máxima efetividade ao novo contrato social instaurado pela Constituição de 1891 (Guardião da Constituição). O TCU, e os demais Tribunais de Contas, com o objetivo de garantir o princípio republicano, que tem como corolários o dever de prestar contas, de ser transparente e de boa gestão de todos aqueles encarregados de aplicar os recursos do povo.
Mas há uma outra ponte a unir umbilicalmente essas duas instituições republicanas: a figura de Rui Barbosa, que pode ser considerado o patrono-mor de ambos os órgãos. O STF e os Tribunais de Contas são verdadeiros filhos de Rui Barbosa. A incansável defesa de Rui Barbosa do papel do STF e dos Tribunais de Contas está registrada em muitos escritos e discursos. Abaixo, duas passagens históricas em que o ilustre jurista justifica a criação dessas instituições:
STF – “O Supremo Tribunal Federal é essa força que diz: ‘Até aqui permite a Constituição que vás; daqui não permite a Constituição que passes’. Eis para que se criou o Supremo Tribunal Federal, que não tem empregos para dar, não tem tesouros para comprar dedicações, não tem soldados para invadir estados, não têm meios de firmar a sua autoridade senão no acerto das suas sentenças”;
TCU – “A medida que vem propor-vos é a criação de um Tribunal de Contas, corpo de magistratura intermediária à administração e à legislatura, que, colocado em posição autônoma, com atribuições de revisão e julgamento, cercado de garantias contra quaisquer ameaças, possa exercer as suas funções vitais no organismo constitucional. (…) Convém levantar, entre o poder que autoriza periodicamente a despesa e o poder que quotidianamente a executa, um mediador independente, auxiliar de um e de outro, que, comunicando com a legislatura, e intervindo na administração, seja, não só o vigia, como a mão forte da primeira sobre a segunda, obstando a perpetração das infrações orçamentárias por um veto oportuno aos atos do executivo, que direta ou indireta, próxima ou remotamente discrepem da linha rigorosa das leis de finanças”.
Passados 133 anos da República, em que se intercalaram governos democráticos e autoritários, constituições outorgadas e promulgadas, é dever reconhecer a importância de ambas as instituições – STF e Tribunais de Contas – para a consolidação dos princípios republicano e democrático e do Estado de Direito em nosso país.
No próximo Capítulo: “O STF e a autonomia dos Tribunais de Contas”.
Valdecir Pascoal – Conselheiro do TCE-PE.