Na sessão do Pleno desta quarta-feira (4), os conselheiros do Tribunal de Contas de Pernambuco externaram surpresa e desconforto em relação ao artigo publicado no jornal Estado de São Paulo, no último dia 26 de fevereiro, intitulado “É hora de garantir o equilíbrio fiscal dos Estados”.
O artigo, de autoria do ministro do Tribunal de Contas da União, Bruno Dantas, e do conselheiro do TCE-TO, André Luiz de Matos Gonçalves, atribui aos Tribunais de Contas estaduais a responsabilidade pela crise fiscal dos Estados, ao dar, segundo os autores, uma interpretação flexível aos limites de gastos com pessoal previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal.
O texto cita exemplos de itens que teriam sido excluídos da despesa total com pessoal por alguns tribunais de contas, entre eles, o TCE-PE, contribuindo para a expansão dos gastos públicos.
O presidente Dirceu Rodolfo foi o primeiro a se pronunciar. “Nada mais injusto do que atribuir às Cortes de Contas a crise fiscal dos estados e municípios”, disse ele. “O texto deixa-nos entrever um mal disfarçado viés intervencionista, como se as interpretações dos Tribunais de Contas em relação a um único aspecto da LRF, revelassem distorções grotescas, de ordem a despertar os gatilhos excepcionais do instituto da intervenção”, afirmou.
Dirceu Rodolfo se referiu a alguns trechos do artigo, considerados por ele inadequados. “O artigo, permissa vênia, parte de premissas profundamente equivocadas. A primeira é a de que cumpre à União majoritariamente, o poder de tributar; a segunda, no dizer dos autores, consiste no fato de que recai sobre os ombros da União a resolução dos rombos fiscais dos Estados. Em verdade, a primeira justificativa para apologia à PEC que atribui monopólio interpretativo da LRF ao TCU corporifica uma das mais agudas distorções de nosso federalismo assimétrico, a concentração de recursos no âmbito da União, em detrimento de uma repartição de receitas mais propícia à sustentabilidade dos entes subnacionais e à redução das desigualdades regionais. Nesse particular, é sempre salutar lembrar que estados e municípios não podem contar com o refogo da instituição de contribuições como espécie tributária. Quanto ao outro argumento, convenhamos que o socorro prestado de tempos em tempos pela União é o efeito colateral da assimetria de nossa federação que há de ser suportado pelo ente federativo mais bem aquinhoado.
“O artigo fala também em “hermenêutica criativa”, continuou o presidente, “um eufemismo que insinua um vício inspirado em racionalidade instrumental. E aí eu faço um questionamento, com todo o respeito: “O TCU passou 19 anos entendendo que as despesas com os trabalhadores que exercem atividades-fim das Organizações Sociais de Saúde não deveriam ser computadas para fins do cálculo da despesa com pessoal da LRF. Em 2019, mudou radicalmente de posição, sem que tenha havido qualquer alteração da lei ou da Constituição Federal. Essa mudança teria sido fruto de uma hermenêutica criativa? “É certo que não. Trata-se de uma interpretação possível, dentro de outras razoáveis, e tem que se ter o devido respeito institucional”, disse o conselheiro.
Na opinião do presidente, as diferentes realidades entre estados e municípios devem ser levadas em consideração na interpretação das leis, não significando, no entanto, flexibilização pelos tribunais de contas.
Em relação às interpretações levadas a efeito pelo TCE-PE, o presidente assevera: “Interpretar o dispositivo legal, revelando assim a norma, é atividade que impõe a devida contextualização. Quando o TCU refluiu do entendimento referido, efetuou uma modulação temporal, certamente vislumbrando possíveis desdobramentos fáticos, de tal sorte a lançar mão de conceito contido na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro que preconiza regime de transição. Com isso, quero asseverar que existem várias LRFs, cada uma sendo bem ajustada a contextos bem discrepantes: estados ricos, estados pobres, estados paupérrimos, municípios de grande porte, municípios pequenos etc., etc. Cumpre às Cortes estaduais e municipais a interpretação da aplicação da norma ajustada a cada contexto, sem, contudo, distorcer o espírito da mesma. Enfim, caros colegas, a proposta contida na PEC não garante bons resultados. Confesso que pode acabar muito pior. Na minha visão, respeitando opiniões contrárias, o TCU interpretará a LRF com visão distanciada das diversas realidades regionais e locais. Em relação aos municípios, por exemplo, percepciono que para o TCU eles representarão números consolidados, meras abstrações idealizadas do Planalto Central. O TCU poderá interpretar e aplicar a LRF a versões de municípios plastificados e pasteurizados em modelos insensíveis a seus reais portes, carências, necessidades e vicissitudes”, disse ele.
“No TCE-PE, os julgamentos nunca são feitos descolados da realidade da jurisprudência dos outros tribunais e das interpretações de instituições como Tribunal de Justiça, TCU, Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça. Pessoas de dentro do sistema, como é o caso dos autores do artigo, precisam conhecer mais de perto os tribunais de contas dos estados, dos municípios e os seus reais espectros de atuação. O nosso TCE-PE sempre se portou como genuíno guardião da LRF. Se há, e há, disceptações interpretativas de monta, existem caminhos consentâneos e reverentes ao federalismo para atenuá-las. Portanto, nada justifica sentenças generalizantes, precipitadas e perfunctórias que findam por publicizar julgamento injusto contra instituições como o TCE-PE, que se colocam à disposição como instrumento de cidadania, e procuram mostrar aos seus jurisdicionados os caminhos de boas práticas, boa governança e de equilíbrio fiscal a serem palmilhados”, concluiu Dirceu Rodolfo.
O conselheiro Valdecir Pascoal falou em seguida e enalteceu a posição do presidente, lembrando que o TCE-PE, ao contrário do que deixou transparecer o artigo, adotou, ao longo desses 20 anos de LRF, uma postura ortodoxa em relação à sua interpretação.
“A primeira coisa que gostaria de registrar é que no Direito, especialmente quando se está diante de interpretações de leis, a verdade é relativa. É preciso humildade intelectual para reconhecer a razoabilidade e respeitar teses contrárias. Mas o fato é que o TCE-PE é um dos Tribunais de Contas que adotaram uma posição essencialmente restritiva em relação à interpretação da LRF. Naqueles pontos que mais pesam no cálculo da despesa com pessoal, a exemplo das despesas com Imposto de Renda, aposentados e pensionistas, nossa posição é a mais dura possível. Sem falar que aqui esse controle da gestão fiscal é também realizado em processos específicos, por meio dos quais se verifica a transparência e as situações que caracterizam ‘infração administrativa’, nos termos fixados na Lei de Crimes Fiscais. Aplicamos diariamente multas vultosas a gestores que não cumprem esses parâmetros fiscais, tudo isso repercutindo na apreciação e no juízo de valor de contas de governo e de gestão. Além da divergência de fundo, quanto ao mérito, os autores foram injustos ao imputarem aos Tribunais locais uma espécie de culpa pelos desequilíbrios fiscais (a coisa é muito mais complexa), ao tempo em que não aprofundaram a atuação real de cada um deles. Já tive a oportunidade de falar sobre o mérito dessa questão e estou cada vez mais convicto de que a posição defendida pela Atricon, por meio da PEC 22/2017, com a previsão da criação de uma Câmara de Uniformização de Jurisprudência, a ser composta por membros do TCU, TCEs e TCMs, é a mais consentânea com o princípio federativo e a natureza do controle externo.”, concluiu o conselheiro.
Os conselheiros Marcos Loreto, Ranilson Ramos, Carlos Neves e Teresa Duere também registraram repúdio ao artigo do Estadão.
Teresa Duere parabenizou o presidente Dirceu Rodolfo pelo registro na sessão do Pleno. “O Tribunal de Contas de Pernambuco mostra a sua relevância pelo seu presidente e por todos nós que nos sentimos injustiçados e não reconhecidos pelo trabalho feito em benefício à sociedade”, disse ela.
“Respeitamos as opiniões contrárias, mas é desconfortável para este Tribunal ver um ministro do TCU trazer um elemento de intervenção federal, mesmo que prevista na Constituição, como analogia para dizer que há um descumprimento de leis federais por esta Casa, porque não é verdade”, afirmou o conselheiro Carlos Neves.