Os Tribunais de Contas têm poder cautelar em concorrências públicas, ou seja, expedem mandados de paralisação antes mesmo da sessão de abertura dos envelopes. Atualmente é das suas competências mais relevantes, respondendo por grande parte das deliberações dos Plenários e entradas nos noticiários. É grandemente eficaz, removendo restrições aos melhores preços, obrigando ao esmiuçamento de especificações, impedindo direcionamento, expondo o que se compra e por quanto – e sustentando a possibilidade disso a qualquer tempo.
No processamento, assemelha-se a um mandado de segurança. Poderia ser considerado esbulho do sistema de jurisdição única e do devido processo legal, consagrados pelos incisos XXXV, LIV e LV do art. 5º de nossa Constituição e existentes na República desde o princípio, mas não é. Quem diz é o Supremo Tribunal Federal (MS 26547 2007 Ministro Celso de Mello).
Embora não esteja deitado na clareza ortográfica que era de se esperar, está sim entre os poderes dos Tribunais de Contas. Trata-se de uma consequência de outras atribuições que lhes são conferidas, estas expressamente. É a teoria dos “poderes implícitos” ou “inherent powers”, da cepa norte-americana que serviu de inspiração para o judiciário brasileiro (macCulloch vs. Maryland 1819).
A cautela pretende assegurar a utilidade do próprio Tribunal que, do contrário, veria interrompida a sua missão precípua que é resguardar o erário por meio do controle de orçamentos, licitações, contratos e despesas.
É fácil ver porque as cautelares, no entanto, incomodam: após tudo preparado, vem o Tribunal e para a licitação. A imprensa noticia. Imediatamente a licitação conta com publicidade e atenção muitíssimo maiores do que originalmente ocorreria. É atraída a curiosidade popular, de outros licitantes, da oposição, de gestores, enfim, o Tribunal chama a atenção da sociedade dizendo “fiquei em dúvida quanto à legalidade deste edital”.
Para os magoados, há uma lição sobre o manejo da coisa pública: alterado ou não o edital, não há sucumbência do gestor. A Democracia funciona assim mesmo, se o gestor erra, é questionado e se explica; se acerta, experimenta o mesmo calvário. Para os administradores que considerarem ultrajante prestar contas em público, talvez seja melhor gerir patrimônio próprio, pois lhes poupará o vexame.
Um breve aparte: é com orgulho que vejo que uma das grandes bandeiras da Atricon é a criação de um Conselho Nacional de Tribunais de Contas que permitirá também aos Tribunais de Contas explicarem-se.
Bem, mas a depender do Projeto de Lei nº 559/2013 que cuida da nova Lei Geral de Licitações e que está em tramitação no Senado Federal, no entanto, será efêmero o namoro do Tribunal de Contas com os poderes de Conselho de Estado – órgão do Direito Europeu que aprecia conflitos em que a Administração Pública é parte.
Como? Em cinco etapas:
1 – Reconhecendo explicitamente o poder cautelar, uma vez que já foi declarado como derivado diretamente da Constituição pelo STF. Uma Lei que pretende contornar decisão do STF sem emendar a Constituição precisa iniciar fazendo uma concessão (art. 93 caput).
2 – Criminalizando a ação popular que se revele improcedente junto ao Tribunal (art. 150, §1º combinado com o art. 148, § 1º).
3 – Vedando a impugnação que seja elaborada por licitantes. O licitante somente pode representar contra edital se alegar algo que lhe prejudique os interesses (art. 150, §3º).
4 – Proibindo a paralisação de licitações de Órgãos Governamentais instalados em cidades que contem com agência dos Correios. Uma vez elaborado o edital, basta postá-lo ao Tribunal 90 dias antes da sessão (art. 93, § 3º).
5 – Proibindo representações contra certames de Empresas Públicas e Sociedades de Economia Mista. A elas não se aplica mais o Estatuto de Licitações (art. 151).
Se o leitor está perplexo com a estratégia, não tome a minha palavra. Confira os artigos por si mesmo. Estão todos, um a um, no Projeto. Se a Lei vai dificultar que o Administrador seja questionado, não há como dizer o que vem a seguir.
Havia excesso nas paralisações? Talvez. Até mesmo os mais legalistas estão respirando aliviados com os cuidados adicionados no caput do art. 93 para que o certame seja paralisado, mas o restante do dispositivo tem feições totalitárias.
O Tribunal de Contas é uma vitória da sociedade brasileira. Entre tantos departamentos de governo voltados para vigiar o cidadão e cuidar para que ele se comporte dessa ou daquela maneira, o Tribunal de Contas é quiçá o único voltado para a outra direção. É aparato de que dispõe a sociedade para observar as ações do Estado, motivo pelo qual aparece ao lado do Poder Legislativo na Constituição. É ângulo da Democracia.
Forças dissimuladas tomam proveito do momento que atravessam as Instituições e, ao invés de propor melhorias, tentam aprofundar a sua crise a fim de que possam encarcerá-las em perímetro confortável.
Se os Tribunais de Contas tiveram suas atribuições expandidas em meio a grandes clamores populares, na Constituição de 1988, na Lei de Licitações 8666/93, na Lei de Responsabilidade Fiscal LC 101/00, na Lei da Ficha Limpa LC 135/10 e na Lei de Acesso à Informação 12.537/11, é apropriado que esta subtração conte, no mínimo, com o mesmo estardalhaço.
Os §§ 3º, 5º e 6º do art. 93, o art. 148, o § 3º do art. 150 e o art. 151 do Projeto de Lei nº 559/2013 em Trâmite no Senado Federal são diametralmente contrários ao interesse público. Eis aí um grito.
**Alexandre Manir Figueiredo Sarquis é Conselheiro Fiscal da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas – Atricon