Por Valdecir Pascoal*
A rejeição das contas de um Presidente da República pelo Tribunal de Contas é razão para o pedido de impeachment? Para deslindar essa questão é preciso conhecer melhor o papel desses órgãos, amiúde objeto de imprecisões.
A Constituição Federal de 1988 foi deveras generosa com os Tribunais de Contas, ao ampliar as suas competências e inserir, por exemplo, o controle da eficiência das políticas públicas ao lado da fiscalização da legalidade dos atos de gestão. E, posto que não os tenha expressamente denominado de Poder, mantendo-se fiel à clássica tripartição iluminista, conferiu-lhes todos os atributos para agirem como órgãos constitucionais independentes. Erram, portanto, aqueles que os enxergam como instituições subordinadas ao Legislativo.
Conforme expressa o artigo 71 da Constituição, essas competências incluem o julgamento das contas de gestão dos administradores e a emissão do Parecer Prévio sobre as contas de governo do Chefe do Executivo, cujo julgamento, neste caso, excepcionalmente, cabe ao Legislativo. As chamadas contas de governo têm por objeto aspectos mais gerais, como a observância das regras de Direito Financeiro atinentes às demonstrações contábeis, à responsabilidade fiscal, aos limites constitucionais de saúde e educação e à efetividade de políticas públicas. Esse exame é realizado por meio de um processo administrativo de contas que tem por base relatório elaborado por um corpo técnico independente, com opinativo do Ministério Público de Contas, sujeitando-se a todos os cânones do devido processo legal.
O Parecer Prévio, salvo um caso único na época Vargas, limitava-se a apontar ressalvas às contas de governo. Nada obstante, com o advento da LRF, o Parecer Prévio ganhou robustez em seu conteúdo, culminando, mais recentemente, com a recomendação do TCU ao Congresso pela rejeição das contas de 2014 da Presidente da República, fundamentalmente em razão da prática de atos equiparados à operações de crédito (empréstimos) vedadas pela lei, fato conhecido como “pedaladas fiscais”.
Atos atentatórios à lei orçamentária, à probidade na administração e à guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos estão elencados, em tese, pela Constituição e pela Lei 1.079/50, como crimes de responsabilidade, que podem ensejar o impeachment. Ocorre que o juízo de valor neste caso possui peculiaridades imanentes à sua natureza política, que não por acaso competem constitucionalmente ao Legislativo. Não cabe ao Tribunal de Contas qualquer participação no processo de impeachment, embora suas decisões, tenham elas caráter definitivo ou de recomendação, como o Parecer Prévio, possam lastrear, como em outros casos, ações próprias de outros Poderes e Órgãos. Isso ocorre, por exemplo, quando os Tribunais, amparados no poder-dever de representação, enviam suas decisões ao Ministério Público, que podem, a partir daí, ingressar na esfera judicial com ações de improbidade, penais e de inelegibilidade.
Respeitar as competências de todas as instâncias de responsabilização não diminui a importância do Parecer Prévio e o papel do Tribunal de Contas. A soberana decisão do Legislativo, a favor ou contra o impeachment da atual presidente, não terá o condão de mitigar o grande legado de todo esse contexto desafiador para o controle externo, a governança pública e para o país. Qualquer que seja o desfecho deste processo, as instituições sairão fortalecidas e o Parecer Prévio estará consolidado como um documento público fundamental para o exercício do controle político, pelo Parlamento, e do controle social.Também ganham nova dimensão jurídica e social o Direito Financeiro, o orçamento público e os princípios da responsabilidade fiscal. E os Tribunais de Contas, que avançaram muito neste período pós-redemocratização, mostram que são instituições essenciais ao Estado e devem continuar a trilha republicana do aprimoramento, a serviço da boa governança pública e do cidadão.
Valdecir Pascoal é Presidente da Atricon e Conselheiro do TCE-PE