Um novo orçamento público?
- Valdecir Pascoal
“Em se tratando de lei orçamentária, avulta um traço peculiar: abaixo da Constituição não há lei mais importante para a Administração Pública, porque o orçamento anual é o diploma legal que mais influencia no destino de toda a coletividade administrada. […] é a lei que mais se aproxima da Constituição na decisiva influência que projeta sobre toda a máquina estatal administrativa e, por isso mesmo, na qualidade de vida de toda a sociedade civil.” (Carlos Ayres Britto, na ADI 4.049)
A Emenda Constitucional (EC) Nº 100, que acaba de ser promulgada, vem com o propósito de conferir maior efetividade e credibilidade ao orçamento público brasileiro. Divulgada como uma proposta que apenas alargaria as hipóteses de impositividade (obrigatoriedade) da lei orçamentária — especificamente em relação às despesas decorrentes de emendas parlamentares de bancadas estaduais e distrital (as emendas individuais já são impositivas desde a EC 86/2015) —, a EC 100 vai muito além e, a rigor, tem o condão de alterar substancialmente a própria natureza jurídica do orçamento em sua totalidade.
Um breve parágrafo-digressão sobre o aspecto jurídico do orçamento. Divergências doutrinárias sobre a natureza jurídica do orçamento público vêm de muito longe. Nunca foi consenso a compreensão do verdadeiro significado jurídico do orçamento e suas implicações práticas. Seria um mero ato administrativo-contábil? Uma lei em sentido material, que cria direitos subjetivos? Apenas uma lei em sentido formal, que autoriza as despesas sem criar, por si só, direitos à sua execução? Neste sentido são clássicas as teorias de Laband, Hoennel, Duguit e Jèze, juristas europeus que fizeram escolas e influenciaram a doutrina e o ordenamento jurídico em todo o mundo. Vale lembrar que esses posicionamentos doutrinários, no mais das vezes, estiveram vinculados a contextos históricos de conflitos entre governos e parlamento. Na “sereníssima república” brasileira das últimas quadras (sqn), para lembrar o famoso conto machadiano, não vem sendo diferente. É possível afirmar que o movimento que culminou com a aprovação da EC 100 está inserido numa conjuntura de tensões entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo, que, desta feita, resultou em considerável incremento do papel do Parlamento no processo orçamentário. Senão, vejamos.
Antes da aprovação da EC 100, a posição que se revelava mais consentânea ao ordenamento jurídico brasileiro — em que a arrecadação de receitas e a realização de despesas, no mais das vezes, decorrem de atos-regra (leis, contratos, convênios etc.), sendo essa peça, até então, um pré-requisito para a realização da despesa — era a que considerava o orçamento como uma lei formal (e não, material), que apenas estimava as receitas e autorizava despesas, sem criar direitos subjetivos. Era esse o entendimento majoritário, malgrado houvesse respeitáveis vozes dissonantes já defendendo a impositividade. O orçamento, portanto, sob esse aspecto, seria apenas autorizativo, uma condição para a realização da despesa pública. Essa posição doutrinária encontrou eco no STF, que, inobstante tenha evoluído em aspectos atinentes ao controle abstrato da constitucionalidade de leis orçamentárias e em posições individuais sobre uma espécie de vinculação mínima de algumas verbas orçamentárias, consagrou a natureza autorizativa do orçamento.
É forçoso reconhecer, no entanto, que, com a aprovação da EC 100, o orçamento público ganha uma nova estatura jurídica. Ao focarmos apenas a natureza impositiva das emendas parlamentares individuais e de bancadas (coletivas), por se tratarem de uma fração bem minoritária das despesas públicas que integram o orçamento geral, não seria razoável concluir, de antemão, que o orçamento deixaria de ser autorizativo para se transformar em uma peça de natureza impositiva. Nada obstante, a nova EC 100 trouxe uma mudança qualitativa substancial em relação ao orçamento público, capaz de alterar a sua natureza. A inflexão histórica é corolário do que prevê o novo §10, do artigo 165 da CF: “A administração tem o dever de executar as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas necessários, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade”.
Tal norma foi inserida na parte do texto constitucional (art. 165) que trata do orçamento público, alcançando, notadamente, a totalidade da relevante parcela atinente às chamadas despesas primárias discricionárias (investimentos novos, transferências voluntárias ainda não conveniadas, por exemplo), e não apenas as despesas derivadas de emendas parlamentares. A partir desse novo regramento pode-se dizer que a natureza do orçamento público no Brasil passa a ser, em regra, impositiva. Doravante, como a Constituição deixa inconteste o dever de executar as referidas despesas, os gestores encarregados de sua execução devem envidar todos os esforços e meios necessários para cumpri-lo. Neste sentido, dado o alcance geral do novo regramento constitucional, infere-se que seriam até desnecessárias as regras especiais de impositividade atinentes particularmente às emendas parlamentares (art. 166), na medida em que a obrigação ampla assinalada no citado §10 já alcançaria as próprias despesas derivadas das referidas emendas.
Um pequeno parênteses. Levando em conta a amplitude e margem de subjetividade da expressão assinalada na parte final do §10 do Art. 165 – “efetiva entrega de bens e serviços à sociedade” – é razoável concluir que apenas os programas orçamentários denominados “finalísticos” ou “temáticos” (definidos no PPA) passarão, além das emendas parlamentares, a ser impositivos, de sorte que a nova regra não abrangeria as demais despesas discricionárias de custeio vinculadas a programas de apoio e gestão. Mesmo que assim consideremos, é forçoso assinalar que em razão do relevante impacto dessa inflexão constitucional, a impositividade passa a ser a regra.
Pondere-se, no entanto, que essa nova natureza impositiva não é absoluta. É relativa, podendo ser mitigada em determinadas situações. Há uma espécie de presunção juris tantum quanto à obrigatoriedade de executar as dotações. Implica dizer que existirão contextos em que os gestores, mesmo que tenham tomado todas as atitudes e feito todos os esforços para execução plena das despesas primárias ditas “discricionárias”, estejam impedidos de realizá-las. Decerto que, numa interpretação sistemática e lógica do novo regramento, o governante não está obrigado a executar as referidas despesas quando a sua realização puder comprometer metas e limites fiscais. Não será possível, por exemplo, começar uma obra, prevista mas ainda não contratada, quando este gasto for resultar em descumprimento da meta fiscal de resultado primário ou quando for ultrapassar o teto de gastos da EC 95.
Igualmente, as hipóteses de contingenciamento (bloqueio temporário de despesas) estatuídas no artigo 9º da LRF continuam vigentes, bem como as regras que restringem a obrigação do gasto quando houver impedimento de ordem técnica e legal ou quando o cancelamento de despesas for necessário para servir de fonte para abertura de créditos adicionais. Todas essas exceções ao novo caráter impositivo do orçamento, embora implícitas e decorram de uma interpretação lógico-sistemática do ordenamento, serão explicitadas no próprio texto constitucional, pois constam de uma proposta paralela de emenda constitucional, já aprovada na Câmara, que será apreciada brevemente pelo Senado, com elevado grau de consenso para aprovação. A propósito, esse inusitado e efervescente contexto de mudanças pontuais do capítulo da CF que trata do orçamento público, envolvendo temas complexos relacionados ao federalismo fiscal e aprovadas com invulgar rapidez, é revelador da superficialidade das discussões que as precederam, sendo, amiúde, como já dissemos, fruto de tensionamentos políticos na busca por novos espaços de poder, o que, por certo, não impedem de trazerem, a reboque, perspectivas de avanços.
O fato é que, sob o regramento anterior à EC 100, o governante deixava simplesmente de executar despesas discricionárias sem a necessidade de motivar esse “não gasto”. A partir de agora a decisão de “não gastar” sempre exigirá a devida motivação. A antiga discricionariedade dá lugar à presunção de obrigatoriedade. Neste ponto, é fundamental que os órgãos incumbidos do controle orçamentário, especialmente os Tribunais de Contas, apreciem a legalidade e a legitimidade da motivação do governante para não executar determinada despesa. Sobre essa nova natureza impositiva do orçamento, vale transcrever, muito a propósito, o seguinte trecho do parecer aprovado pela Comissão Especial de Mérito da Câmara dos Deputados: “A nova abordagem do papel do orçamento público implica o compromisso de devolução à sociedade de bens e serviços, em contrapartida à tributação, cabendo sua aplicação plena às programações que integram programas temáticos ou finalísticos. […]. O interesse público e do próprio Legislativo está na execução de todas as políticas públicas veiculadas pelo orçamento aprovado. O regime do orçamento impositivo ora adotado no Brasil é considerado moderado e flexível se comparado, por exemplo, com aquele praticado nos Estados Unidos. Naquele país, todas as despesas orçamentárias são de execução obrigatória, sendo que o descumprimento do orçamento exige pronunciamento formal e prévio do Congresso Nacional.”
Esclareça-se que todo esse debate acerca da natureza do orçamento, se autorizativo ou impositivo, na verdade, alcança apenas uma parcela do orçamento: as chamadas despesas primárias discricionárias. Isso porque as demais despesas assinaladas no orçamento, em razão de terem sido criadas anteriormente por força de lei ou contratos (juros da dívida, remuneração dos servidores, obras contratadas, por exemplo) já são, de fato, naturalmente, obrigatórias. Portanto, considerando que a maior parte das despesas orçamentárias são de execução obrigatória por força de leis específicas ou contratos; considerando que, a partir da EC 100, até despesas antes consideradas discricionárias (facultativas), passam, em regra, a ser de execução obrigatória (impositivas); considerando, ademais, as vinculações constitucionais e legais já existentes, a exemplo dos gastos mínimos em educação e saúde; conclui-se, à luz desse contexto, que o orçamento brasileiro ficou ainda mais rígido e inflexível, estreitando o espaço do seu manuseio na condução da política fiscal, sendo este ponto, certamente, o que será mais criticado.
A história registra grandes inflexões benfazejas no orçamento público brasileiro. No período mais recente, destacam-se, entre elas, aquelas introduzidas pela Lei nº 4.320/64, quando estabeleceu as bases de um orçamento programático, pela Constituição de 1988, quando reforçou o planejamento orçamentário aos instituir a tríade PPA/LDO/LOA e, mais recentemente, pela LRF, ao incrementar o dever de transparência e papel da LDO na consecução das metas e resultados na busca do equilíbrio fiscal. A EC 100 também tem o condão de entrar para a história. Com ela, descortinam-se algumas oportunidades de aprimoramento.
Numa perspectiva otimista, vislumbram-se, dentre outros, os seguintes avanços: a) o planejamento orçamentário poderá ganhar em efetividade, na medida em que os Poderes e os órgãos da Administração Pública deverão estimar as receitas e fixar as despesas com mais precisão e prudência; b) a proporção de executoriedade aumentará e as hipóteses de contingenciamento tenderão a diminuir; c) diminuirá o uso do orçamento como instrumento de barganhas político-partidárias e sem critérios técnicos; d) o orçamento público ganhará confiança e maior credibilidade, deixando de ser visto por muitos como uma “peça de ficção”. Por outro lado, caso os governantes não assumam uma nova postura responsável e continuem a superdimensionar as receitas e as despesas (em alguns casos, mormente nos pequenos municípios, fruto da precariedade de sua estrutura de governança e planejamento), dada essa nova natureza impositiva do orçamento, serão grandes as chances de acontecerem crises institucionais, responsabilizações por parte dos Tribunais de Contas e judicialização ainda maior dos temas orçamentários.
Inegável que essa importante inflexão normativa trazida pela EC 100 traz “régua e compasso” para se pensar em um novo orçamento público no Brasil. Nada obstante, essa impositividade precisará estar acompanhada de um também novo comportamento na etapa do ciclo orçamentário que precede o envio da proposta ao Legislativo. Falo do momento da elaboração do orçamento, em que, dada a delimitação das receitas estimadas, são realizadas as escolhas das políticas públicas prioritárias. Escolhas semelhantes às de “Sofia”, academicamente chamadas “trágicas”, pois é necessário selecionar ações dentro das próprias prioridades (em educação, saúde e segurança, por exemplo). Nessa hora, não se pode olvidar o propósito maior da existência do orçamento público: dar suporte à a garantia da efetividade dos direitos fundamentais. Cada escolha deve estar pautada por uma espécie de darwinismo às avessas, considerando que a escolha das políticas públicas deve priorizar justamente aquela parcela da sociedade que mais necessita da ação financeira do estado. A cada seleção, é preciso verificar a observância dos objetivos fundamentais da república, assinalados no artigo 3º da Carta Cidadã. A escolha de determinada política pública contribui para uma sociedade mais livre, justa e solidária? Para a redução da pobreza, da marginalidade, das desigualdades sociais e regionais? Para promover o bem comum, sem preconceito e discriminação? Para garantir o desenvolvimento nacional? O verdadeiro orçamento deve estar em plena sintonia com esses valores civilizatórios.
A Impositividade estatuída pela EC 100, e o consequente choque de realidade que ela propiciará, poderá, com efeito, trazer avanços importantes ao processo orçamentário brasileiro. Se essa impositividade, ademais, vier acompanhada de uma nova (com)postura de governantes e legisladores (sem esquecer do papel dos órgãos de controle e da sociedade), reconhecendo o orçamento como instrumento fundamental de transformação social, aí sim, estaremos diante de um novo orçamento público, mais republicano, democrático, construtor de esperanças.
Valdecir Pascoal – Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco. Autor, dentre outros, do livro: Direito Financeiro e Controle Externo (Editora GEN).