Valor Econômico: Implosão regulatória do licenciamento ambiental

Fabio Feldmann e Suely Araújo

A ideia de elaborar uma lei de aplicação nacional com normas gerais para o licenciamento ambiental surgiu dos ambientalistas na sequência imediata do capítulo de meio ambiente da Constituição de 1988. A primeira proposição legislativa sobre o tema pretendia disciplinar o estudo prévio de impacto ambiental (EIA), incluído no artigo 225 de nossa Carta Magna, e no curso de sua tramitação foi ampliada para abranger todo o processo de licenciamento1. Um segundo processo, que começou em 20042 e passou a reunir um conjunto de projetos apensos, foi aprovado pela Câmara dos Deputados apenas em 2021, na forma de um substitutivo que, se transformado em lei, implodirá o licenciamento ambiental no país. Notícias recentes indicam que o Senado pretende pautar essa proposta ainda no mês de maio e fazer alterações mínimas ou mesmo aprovar integralmente o texto elaborado pelos deputados. Se isso realmente acontecer, estaremos diante do pior ataque à legislação ambiental brasileira ocorrido nas últimas quatro décadas, em ano de COP30 no país.

O licenciamento ambiental e a avaliação de impactos ambientais a ele inerente são as ferramentas mais relevantes que o país possui para assegurar que empreendimentos potencialmente poluidores ou causadores de outras formas de degradação ambiental sejam implementados com análise de alternativas técnicas e locacionais, além de previsão de medidas para evitar, mitigar e compensar impactos ambientais. Foi o licenciamento ambiental corretivo que mudou a realidade de regiões como o município de Cubatão (SP), o “Vale da Morte” que nas décadas de 1970 e 1980 convivia com inúmeros problemas decorrentes da poluição industrial, entre eles muitas crianças nascendo com anencefalia e outras malformações.

Essa realidade, que impulsionou o trabalho de uma geração de ambientalistas, parecia afastada definitivamente, mas tende a reaparecer com a proposta que, no lugar de estabelecer regras gerais para o licenciamento ambiental, aborda o licenciamento como mera barreira burocrática a ser superada. O projeto despreza o aprendizado consolidado desde 1981, quando o licenciamento ambiental, que nasceu em alguns Estados na década de 1970, ganhou aplicação em escala nacional pela Lei da Política Nacional do Meio Ambiente.

O licenciamento ambiental pode e deve ser aperfeiçoado e agilizado, com maior padronização de procedimentos, eliminação de exigências desnecessárias, intensificação do uso de tecnologia, construção de bases de dados com acesso público e outros avanços. Também precisa de equipes mais numerosas nos órgãos ambientais, seja para fazer as análises técnicas, seja para realizar as vistorias necessárias no pós-licença. As dificuldades de acompanhamento na fase de operação dos empreendimentos estão entre as causas que levam a tragédias, como os rompimentos das barragens de rejeitos em Mariana (2015) e Brumadinho (2019).

Tais avanços estão longe de ser o objetivo do texto aprovado pela Câmara dos Deputados em 2021, que deve ser votado no Senado Federal. O texto prioriza em seu conteúdo as isenções de licença e o autolicenciamento. Ficarão sem licença, por exemplo, empreendimentos enquadrados em um conceito genérico de melhoramento da infraestrutura em instalações preexistentes, que pode abranger de um reparo em uma ponte de uma rodovia ao asfaltamento do Trecho do Meio da BR-319, que irá multiplicar o desmatamento numa região com floresta preservada, causando degradação e aumento da emissão de gases de efeito estufa.

Ainda mais grave do que a extensa lista de isenções é a previsão de ampla aplicação da chamada Licença por Adesão e Compromisso (LAC), na prática um apertar de botão pelo empreendedor que gerará uma licença sem que ele forneça qualquer estudo ambiental e sem que sejam avaliadas alternativas técnicas e locacionais para o projeto. Da forma como está no texto, a grande maioria dos processos ocorrerá por autolicenciamento. Joga-se no colo do Poder Público realizar inúmeros estudos ambientais prévios e deixar prontas condicionantes automáticas para diversas categorias de empreendimentos, tudo e mais um pouco, em diferentes realidades regionais, o que é inviável. Expõe-se contraditoriamente uma visão liberal que, ao mesmo tempo, pressupõe um Estado máximo. Pode-se debater a LAC, mas não aprovar as regras elaboradas sobre ela pelos deputados.

Deve ser dito que a reunião de muitas isenções com o autolicenciamento implica na redução expressiva dos processos participativos existentes em diferentes fases do licenciamento ambiental. Há relação direta entre obrigações constantes do licenciamento e democracia, como na realização de audiências públicas e na obrigatoriedade de transparência plena dos documentos. Será reduzida também a garantia de que os processos sejam informados pelo conhecimento científico. Tudo isso passará a existir apenas para reduzido número de empreendimentos.

Há outros problemas graves nessa proposta. A participação no processo de licenciamento dos órgãos responsáveis pela proteção de terras indígenas, territórios quilombolas, Unidades de Conservação da natureza, patrimônio histórico e cultural e saúde humana foi esvaziada de forma absurda, resultando em graves violações a direitos assegurados expressamente pela Constituição. Por exemplo, somente seriam consideradas nas análises terras indígenas com demarcação homologada e territórios quilombolas titulados, afastando direitos pela inação do governo federal.

Outra questão abordada de forma a gerar retrocessos são as disposições sobre as condicionantes ambientais a serem incluídas nas licenças. O texto busca claramente não esclarecer, mas sim reduzir as responsabilidades dos empreendedores pelos impactos gerados. Os órgãos licenciadores passarão a ter dificuldades de demandar, entre outras, medidas relacionadas ao meio socioeconômico, que em muitos empreendimentos de porte é o aspecto mais afetado, a partir principalmente do afluxo populacional, que gera desagregação social e grande pressão sobre os serviços públicos locais.

Há também omissões evidentes no texto. A palavra clima não aparece uma única vez, em plena crise climática. É inacreditável. O licenciamento ambiental irá simplesmente desconsiderar esse tema? Outro assunto ignorado: a Avaliação Ambiental Estratégica (AAE), que chegou a ser discutida na Câmara, mas foi suprimida no texto aprovado.

Em palavras claras: o que se pretende é implodir o licenciamento ambiental no país, sob o discurso de aperfeiçoá-lo. No conjunto, será intensificada – e muito – a insegurança jurídica já presente em processos de licenciamento. O texto em pauta reflete uma visão que nega a importância da avaliação de impactos ambientais, nega o conhecimento acumulado nesse campo, nega os direitos socioambientais e que não trará benefícios para ninguém.

Fabio Feldmann é advogado e consultor, ex-deputado federal constituinte e ex-secretário de Meio Ambiente do Estado de São Paulo
Suely Araújo é urbanista e advogada, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, consultora legislativa aposentada da Câmara dos Deputados e ex-presidente do Ibama.

* Artigo originalmente publicado pelo jornal Valor Econômico

Foto: Márcia Foletto/Agência O Globo