Vigiar e punir, com transparência e responsabilidade

Dimas Ramalho

Uma pesquisa nacional publicada em abril trouxe à tona uma constatação alarmante, mas já percebida por qualquer cidadão que transita pelas grandes cidades do país: a violência e o crime são hoje a principal fonte de aflição do brasileiro. Segundo o levantamento da Quaest, 29% da população manifestam preocupação com o tema –um aumento de três pontos percentuais em relação à pesquisa realizada em janeiro.

A falta de segurança voltou a ganhar um papel central no debate público e vem moldando políticas, comportamentos e decisões governamentais. Assim, não surpreende que o Estado busque alternativas tecnológicas para responder aos desafios impostos pela criminalidade urbana. Entre essas alternativas, destaca-se o uso crescente de câmeras com tecnologia de reconhecimento facial.

Cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Salvador e Belo Horizonte têm ampliado o uso dessa ferramenta, que promete agilidade, precisão e capacidade de resposta mais rápida às ocorrências. Essas câmeras, geralmente instaladas em pontos estratégicos, como estações de metrô, centros comerciais, vias movimentadas e entradas de grandes eventos, são conectadas a bancos de dados das forças de segurança pública, permitindo a identificação em tempo real de pessoas procuradas pela Justiça ou envolvidas em investigações criminais. Trata-se de uma inovação que, sob a ótica da eficiência, possui um apelo evidente: é uma forma de modernizar o combate ao crime, de antecipar ações policiais e de ampliar o alcance do olhar estatal em espaços urbanos cada vez mais complexos e dinâmicos.

Há, com efeito, resultados promissores. Na Bahia, por exemplo, um dos estados que mais investiram na vigilância por câmeras, o uso dessa tecnologia resultou, desde 2019, na prisão de quase 2.000 foragidos. Autoridades e especialistas em segurança pública apontam que a presença das câmeras pode inibir a prática de delitos, além de permitir que a atuação policial se torne mais precisa, evitando deslocamentos desnecessários e aumentando a eficácia das operações. A promessa de uma cidade mais segura, vigiada por olhos eletrônicos que jamais piscam, parece, à primeira vista, a resposta ideal para uma sociedade, compreensivelmente, ansiosa por segurança.

No entanto, os riscos associados ao reconhecimento facial não podem ser ignorados nem relativizados. Diversos estudos conduzidos por instituições independentes e especialistas em direito digital e tecnologia têm apontado falhas importantes nesses sistemas, especialmente relacionadas à ocorrência de falsos positivos. Os algoritmos, por mais avançados que sejam, não estão imunes a erros, e esses erros não são distribuídos de maneira aleatória.

Pessoas negras e indivíduos de áreas periféricas têm sido, de maneira desproporcional, alvos de identificações equivocadas, o que revela um viés nos dados utilizados para o treinamento dessas inteligências artificiais. Em outras palavras, a tecnologia, em vez de neutralizar desigualdades históricas, pode acabar por reforçá-las, institucionalizando práticas discriminatórias sob o manto da eficiência técnica.

Outro aspecto preocupante é o vácuo legal em que se encontra o uso dessa tecnologia. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) estabelece diretrizes para o tratamento de dados sensíveis — como imagens e características biométricas —, mas não entra no mérito do uso das tecnologias de vigilância como medida de segurança pública. Na prática, isso significa que não há regras claras sobre armazenamento das imagens, prazos de retenção, auditorias independentes ou mecanismos de responsabilização em caso de uso abusivo. Já passa da hora, portanto, de o Congresso Nacional formular, debater e aprovar um marco legal específico sobre o tema.

O poder público tem o dever de buscar soluções inovadoras para os problemas complexos que afligem a sociedade, como é o caso da violência urbana. No entanto, esse dever deve vir acompanhado de responsabilidade, cautela e profundo respeito aos direitos individuais. O reconhecimento facial pode, sim, contribuir para o enfrentamento da criminalidade, desde que seja utilizado com absoluta transparência em seus objetivos, com proteção rigorosa das imagens gravadas e com garantias efetivas de que não haverá reprodução de preconceitos raciais, sociais ou de gênero em suas identificações.

A segurança pública não pode ser construída à custa da cidadania. É possível — e necessário — compatibilizar tecnologia e democracia, eficiência e direitos humanos, inovação e justiça. O sucesso do combate ao crime no Brasil dependerá, em grande medida, da nossa capacidade de equilibrar esses princípios em benefício de todos.

Dimas Ramalho é conselheiro-corregedor do TCE-SP e diretor de Relações Internacionais da Atricon