Cem anos de um marco referencial para a Contabilidade Pública

A sabedoria de Santo Agostinho nos legou o ensinamento que não basta fazer coisas boas; é preciso fazê-las bem.

No plano governamental, poderíamos associar esse pensamento a uma dimensão de agir que vá para além de formalidades e enunciados legais. Assim é que, se a criança não estiver na escola; ou, se matriculada, não recebe merenda, ou não tem acesso aos instrumentos básicos de aprendizagem, é certo que não se estará “fazendo bem”, ainda que o piso constitucional tenha sido aplicado.

Na nossa atuação no controle da Administração Pública, muitas vezes destacamos que os Tribunais de Contas desempenham um papel essencial para a materialização dos direitos fundamentais. É que, de algum modo, incidimos em relação a políticas públicas como a educação, a saúde, a segurança, a assistência, seja na perspectiva da legalidade ou da eficiência, da eficácia, da efetividade. Quer dizer: analisando se os recursos públicos se traduzem em melhores resultados, com mais benefícios e qualidade para o cidadão, ajudando a diminuir desigualdades e, por assim, convergindo para que se alcance um dos objetivos da República: a concretização do bem de todos.

Nesse quadro, a Contabilidade Aplicada ao Setor Público, enquanto sistema de informações, é um instrumento de vital importância para

facilitar o registro, o controle, a demonstração transparente e a análise dos fenômenos orçamentários, financeiros e patrimoniais que impactam a gestão pública e as suas entregas à sociedade.

Num olhar retrospectivo, pode-se dizer que a chegada da Família Real em 1808, o desenvolvimento econômico e a expansão da atividade colonial acarretaram o aumento das despesas, o que exigiu um aperfeiçoamento do controle das contas públicas. Tudo isso resultou na aprovação, em 28/06/1808, do Alvará de D. João VI, que criou o Erário Régio e o Conselho da Fazenda. Essa norma tinha como objetivo unificar a arrecadação, a distribuição e a administração da fazenda real. Além disso, regulou a escrituração da contabilidade. De acordo com esse alvará, a escrituração deveria ser mercantil por partidas dobradas, por ser a única seguida pelas nações mais civilizadas, de modo a evitar o subjetivismo nos registros, os erros, os subterfúgios, a malícia e a fraude dos prevaricadores.

Em 1922, com o Brasil a enfrentar dificuldades para contrair financiamentos externos, é que a Contabilidade Aplicada ao Setor Público ganhou uma maior envergadura legal, com a aprovação de dois importantes atos normativos.

O primeiro deles, o Código de Contabilidade, foi organizado pelo Decreto nº 4.536, de 28/01/1922, e representou um marco para a Contabilidade Pública brasileira. De acordo com o art. 1º, a contabilidade da União compreendia os atos relativos às contas de gestão do patrimônio nacional, à inspeção e ao registro da receita e da despesa federais.

Entre outros aspectos contábeis, destaca-se a obrigatoriedade da manutenção de registro das operações pelo método das partidas dobradas, a composição das contas do exercício financeiro, que abrangiam a conta do orçamento e o balanço do patrimônio, os bens imóveis, a dívida ativa, a dívida passiva e a conta da tesouraria.

É nesse mesmo estatuto que vamos encontrar algumas das primeiras regulações sistematizadas acerca do tema “licitações”. Incipientes, é verdade, se considerados os avanços posteriormente experimentados pela legislação brasileira, sobretudo a partir da Lei n° 8.666/1993.

A destacar, por igual, as referências, no Código de Contabilidade, à atuação preventiva do Tribunal de Contas (na verdade, à época, em muitas situações, com conotação de exame prévio). Além da evidente valorização do papel daquele órgão, aqui são também lançados elementos fundantes que ganharam musculatura ao longo da nossa trajetória institucional e administrativa, relacionados à atuação sintônica dos controles interno e externo, valendo destacar, no particular, a Constituição de 1988, o Decreto-Lei n° 200/1967 e a Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF).

O segundo, o Decreto nº 15.783, de 8/11/1922, regulamentou a execução do Código de Contabilidade Pública. Com os seus 926 artigos, um verdadeiro código de Direito Financeiro, revolucionou as práticas contábeis vigentes ao tratar: da centralização dos serviços de contabilidade; do exercício financeiro; do orçamento e das contas da gestão financeira; da receita pública; da despesa pública; das demais operações a cargo das tesourarias do Estado; dos saldos do balanço financeiro e das normas administrativas que precedem o empenho das despesas; e também dos bens públicos e dos seus responsáveis.

De acordo com o art. 7º do citado Decreto nº 15.783/1922, a escrituração dos fatos administrativos concernentes ao patrimônio público e à execução dos orçamentos também deveria ser executada pelo método das partidas dobradas.

Merece relevo a descrição das contas da gestão financeira e da patrimonial, que compreendem, respectivamente, o balanço financeiro (abarcando a conta do orçamento e a conta geral dos caixas do Estado, ou o balanço definitivo da receita e da despesa) e o balanço patrimonial (abrangendo os valores ativos e passivos a cargo da União, compreendendo os bens móveis e imóveis, a dívida ativa e a passiva, as contas de agentes consignatários, bancos e correspondentes, diversos responsáveis e as contas de terceiros, no começo do exercício, segundo as demonstrações anexadas ao balanço anterior, o que denota uma preocupação com a comparabilidade das informações).

O balanço patrimonial demonstrava, ainda, as variações no patrimônio por efeito da execução do orçamento, por valorizações, depreciações ou por quaisquer outras causas extraorçamentárias, assim como todos os valores ativos e passivos a cargo da União, denotando uma devida preocupação com a realização e com a efetiva exigibilidade, respectivamente, para valores ativos e passivos.

Atualmente, a Contabilidade Aplicada ao Setor Público possui procedimentos definidos pela Lei nº 4.320/1964, que representam avanços significativos no que tange à padronização dos orçamentos e balanços das entidades de Direito Público, bem como pelas orientações emanadas da LRF.

Contudo, cabe destacar os importantes instrumentos editados no ano de 1922, que representam, indubitavelmente, um importante marco referencial legislativo para a Contabilidade Aplicada ao Setor Público no Brasil. E, a partir dele, fomos construindo mecanismos essenciais à gestão, ao controle e à transparência de tudo o que se passa no ambiente estatal, de todos os Poderes e órgãos.

Inaldo da Paixão Santos Araújo
Mestre em Contabilidade, Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado da Bahia, professor e escritor.
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Cezar Miola
Pós-graduado em Direito Processual Civil e em Direito, Políticas Públicas e Controle Externo, Conselheiro-Ouvidor do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, Presidente eleito da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon).
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