Demian Fiocca
Elevação nas projeções para a taxa Selic afetou as expectativas para as contas públicas
A política monetária causou a atual piora no cenário fiscal. Até agosto de 2024, a inflação ficou baixa e estável, oscilando em torno de 4,3%. A mediana das projeções de inflação estava em 3,9% para 2025, 3,6% para 2026 e 3,5% para 2027. A Selic era gradualmente reduzida.
Em setembro de 2024, porém, mesmo sem um choque inflacionário, o Banco Central (BC) iniciou novo ciclo de alta dos juros. A postura mais agressiva somou-se a uma meta de inflação baixa demais. Assim, o BC indicou ao mercado que manteria a Selic muito alta, por muito tempo.
As previsões para o componente financeiro do déficit público começaram então a ser revistas – e se acentuaram após o Copom de 11 de dezembro. Entre 30 de agosto e 31 de dezembro, as projeções para o déficit nominal/PIB subiram de 6,8% para 8,4% em 2025; de 6% para 7,6% em 2026; e de 6,1% para 6,8% em 2027.
Mas os anúncios do Ministério da Fazenda de 27 de novembro também causaram uma piora nas expectativas para os resultados primários, certo? Errado. Enquanto revia para cima os gastos financeiros, o mercado apenas esperou para ver se o resultado primário viria “pagar a nova conta do BC”. O resultado primário ficou onde estava. Então o mercado precificou o custo fiscal da nova postura monetária.
Entre 30 de agosto e 31 de dezembro, as projeções para o déficit primário até melhoraram um pouco: de 0,8% para 0,6% para 2025; de 0,7% para 0,5% para 2026; e de 0,5% para 0,3% para 2027.
Ora, mas não existe um conceito de que é desejável que a política monetária não esteja constrangida por seus custos fiscais? Existe. Entretanto, essa ideia prospera no contexto de políticas monetárias com custos normais. Não pode ser simplesmente repetida para ignorar os custos extraordinários das taxas de juros que voltaram a ser praticadas no Brasil.
O estudo “Targeted Taylor rules”, publicado pelo BIS (2024), calcula o que podemos chamar de variação “normal” nas taxas de juros, considerando sete bancos centrais de referência. Para combater um choque inflacionário de 1%, os bancos centrais elevam juros em 1,4% em média, ou seja, 0,4% em termos reais, podendo variar com a natureza do choque. O próprio Taylor (1993) e (1998) propunha elevação de 0,5% nos juros reais, para combater 1% de desvio na inflação.
Outros estudos para diferentes países apontam que a taxa de juros real “neutra”, por sua vez, oscila normalmente entre 1% e 2%. Assim, em períodos de contenção da inflação, as taxas básicas sobem a 3% ou 4% em termos reais. Em fases de economia fraca, as taxas reais caem a zero ou ficam ligeiramente negativas. Ao longo do século XXI, as taxas de juros reais médias para conjuntos representativos de países com metas de inflação são da ordem de 1% a 2%.
Não é razoável, portanto, pautar-se em convenções comuns a outros países quando, no Brasil, se trata de praticar taxas de juros reais de 6% a 8% por anos seguidos, sem grandes choques inflacionários.
O BC falhou em avaliar as consequências fiscais de juros extraordinariamente altos. A elevação nas projeções para a Selic afetou as expectativas para as contas públicas; estas deterioraram a confiança; o que provocou desvalorização da taxa de câmbio; que elevou a inflação. De fato, a desvalorização cambial elevou as projeções de inflação para 4,6% em 2025 e 3,7% em 2026 e 2027.
Para reverter os níveis anômalos da taxa básica de juros no Brasil é preciso reverter suas causas: (i) uma meta de inflação equivocada e (ii) um uso excessivo da Selic.
Como apontado em Carta Aberta ao CMN, que subscrevemos com oito economistas de cinco universidades, a meta de inflação de 3% foi um experimento mal-sucedido. Outros importantes economistas, como Aloísio Araújo, Sergio Werlang e Bráulio Borges também apontaram, em variadas circunstâncias, que a meta ótima para as características do Brasil está na faixa de 4% a 4,5%.
Como o BC estourou o teto da meta em 2024, tem-se aí uma oportunidade para traçar nova trajetória descendente, por exemplo, uma inflação de 4,5%, 4,25% e 4% para 2025, 2026 e 2027, respectivamente.
No que se refere aos instrumentos da política monetária, Pastore (1996), Pires (2009), Fiocca (2011), Oreiro et. al (2012) e outros apontaram que o perfil inusual da dívida brasileira, em grande parte indexada à Selic, faz com que a taxa básica de juros tenha eficiência muito baixa. O custo fiscal de usar só a Selic para conter a demanda e a inflação é anormalmente alto no Brasil.
Em artigo de 14/07/2011, aqui no Valor, calculamos que a expansão fiscal causada pela dívida indexada à Selic era de 0,24 ponto percentual do PIB para cada 1% de alta nos juros. Isso erodia o desejado efeito contracionista. Desde então, a situação piorou.
Hoje, a dívida em Selic, incluindo operações compromissadas, é da ordem de 35% do PIB. Uma elevação de 1% na taxa básica de juros causa expansão fiscal de 0,35 p.p. do PIB já nos 12 meses seguintes. Em economias típicas, com dívida pública longa e prefixada, passam-se anos antes que a gradual renovação da dívida pública seja parcialmente afetada por juros mais altos.
Corroborando o diagnóstico de erosão da eficiência da Selic, o BC estimava, em 2011, que 1% de alta nos juros reduzia a inflação em 0,6%, antes dos efeitos começarem a se dissipar (Dez Anos do Regime de Metas. p. 74). Atualmente, o BC estima que 1% de alta na Selic reduz a inflação em apenas 0,25%, no pico de seus efeitos (Relatório de Inflação. Março de 2023. p. 72).
Além de corrigir a meta de inflação para níveis ótimos, portanto, a segunda parte da solução está em ajustar os instrumentos de política monetária de modo a exercer a mesma pressão contracionista com Selic mais baixa. Trata-se de combinar instrumentos quantitativos, como recolhimentos compulsórios e disposições regulatórias.
Ora, mas o que hoje chamamos de medidas macroprudenciais não são preferivelmente aplicadas visando apenas à estabilidade do sistema financeiro? Sim. Só que, mais uma vez, tal convenção é adequada a economias nas quais juros reais médios de 2% dão conta do controle da inflação. Para uma realidade muito diferente, cabem soluções pelo menos um pouco diferentes.
Dada a altíssima entropia a que chegou a Selic, é até provável que a intensidade necessária dos macroprudenciais seja pequena, quando a Selic for substancialmente reduzida.
A meta de inflação errada e a ineficiência da Selic não se corrigirão sozinhas. Insistir na trilha atual, como se não houvesse anomalia na política monetária, resultará apenas em empresas fragilizadas, famílias endividadas, Estado em má condição fiscal e pior desempenho econômico.
Demian Fiocca é economista
Artigo originalmente publicado no Valor Econômico em 27/01/2025