O essencial visível aos olhos

Valdecir Pascoal

A recente aprovação da Proposta de Emenda à Constituição n° 39/2022, conhecida como PEC da Essencialidade, consagra no texto constitucional aquilo que  a sociedade brasileira já reconhece: os Tribunais de Contas (TCs) são instituições permanentes e essenciais ao controle externo da Administração Pública. O legislador constitucional foi além, ao vedar expressamente sua extinção ou criação. Esse reconhecimento explícito e definitivo representa uma homenagem à República, à democracia, à segurança jurídica, à independência e à institucionalidade. 

Tão logo a PEC foi aprovada pelo Congresso Nacional, lembrei-me da célebre lição do livro O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry: “O essencial é invisível aos olhos”. A frase surge de um diálogo entre o jovem Príncipe e a sábia Raposa sobre a natureza humana e o que realmente importa nas relações e nos afetos, aspectos que de fato podem não estar à nossa vista. Contudo, o que parece certeiro para as relações humanas, ou mesmo adequado a um regime monárquico, em que a res (coisa) não é “do povo”, não se harmoniza plenamente com a nossa realidade. Estivessem entre nós, os personagens concluiriam que, num país republicano que se pretende democrático e transparente, o essencial também precisa estar aos olhos do cidadão e da Constituição.

A emenda consolida e protege o modelo de controle externo que o Brasil vem aperfeiçoando desde 1890, ano em que Rui Barbosa idealizou o TCU como um corpo de magistratura independente e destinado a tornar efetiva a orientação e a responsabilidade dos gestores. A Carta de 1988 já havia ampliado essa visão, conferindo destaque aos TCs como instituições de Estado. A emenda, no entanto, elimina todas as dúvidas, aprofunda esse caminho e reafirma, em pleno século XXI, que não há democracia forte sem instituições robustas.

Para compreender a importância deste momento, é preciso voltar algumas casas na história dos TCs no Brasil. 

A Constituição de 1988 é o alicerce de um novo tempo para esses órgãos da República. Ela reforça suas competências, prevê o controle da regularidade e da eficiência das políticas públicas, cria um regime de garantias para seus membros e lhes assegura autonomia administrativa e orçamentária. A esse marco inicial seguiram-se outros avanços institucionais: as leis de Responsabilidade Fiscal, da Ficha Limpa, de Acesso à Informação, a LINDB, o Marco de Medição de Desempenho dos TCs concebido pela Atricon (MMD-TC) e também a evolução da jurisprudência do STF, notadamente a das primeiras décadas após a Constituição. 

Nos últimos anos, porém, o sistema de controle externo vem enfrentando um desafiador ciclo de “backlashinstitucional” – expressão que designa movimentos de reação e tentativa de enfraquecimento das instituições. São exemplos disso as iniciativas, sejam legislativas ou judiciais, de enfraquecimento do poder cautelar; de restrição à competência para apreciar a constitucionalidade de leis em casos concretos (Súmula 347 do STF); de limitação à responsabilização de prefeitos ordenadores de despesas; e as iniciativas de extinguir TCs do(s) Município(s), a exemplo do TCM-CE, extinto em 2017, com a anuência do próprio STF. Esse movimento anticontrole retoma, em certa medida, outras tentativas surgidas nos idos de 1990, sob a influência de lobbies internacionais que buscavam substituir esses órgãos por auditorias privadas ou pelo modelo de controle anglo-saxão de auditorias gerais. Some-se a isso uma onda mais recente de ataques oriundos do submundo das mídias digitais enviesadas e politizadas, que buscam, por meio de fake newsou distorção, intimidar e desconstruir instituições.   

Agora, com a aprovação da PEC da Essencialidade, o Congresso promove um movimento oposto: um verdadeiro “frontlash democrático” (movimento na mesma linha da recente e emblemática decisão do STF que restaurou a competência dos TCs para julgar contas de gestão de prefeitos). É certo que o primoroso trabalho feito pela Atricon e demais entidades representativas dos TCs foi fundamental para levar ao Parlamento um retrato preciso da atuação desses órgãos. Mostrou-se que, hoje, os TCs não se limitam a julgar contas: previnem erros, avaliam políticas públicas, medem resultados, buscam consensos, dialogam, orientam gestores, promovem transparência e têm a coragem de medir seu próprio desempenho, reconhecer desafios e aprimorar-se continuamente. A PEC é, portanto, o coroamento de uma trajetória de resistência e aperfeiçoamento institucional. No entanto, esse novo marco institucional surge, sobretudo, de uma vontade social. O legislador traduziu em norma o que já estava na consciência do cidadão brasileiro, cuja expressiva maioria, apontam as pesquisas, reconhece a necessidade e a relevância dos Tribunais de Contas.

Volto a Saint-Exupéry: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.” Essa outra lição cabe com perfeição ao momento. Ao longo das últimas décadas, os TCs cativaram a confiança da sociedade brasileira, mostrando-se úteis e essenciais à boa governança. Num tempo em que o mundo assiste a tentativas de erosão de democracias e a desinformação é quase regra, o Congresso reconhece o trabalho e oferece uma resposta à altura: fortalecer o controle público é fortalecer a própria democracia. 

Cativamos. 

A responsabilidade cresce. 

Honrar essa confiança é preciso!

Valdecir Pascoal é presidente do TCE-PE e ex-presidente da Atricon