Confira abaixo a íntegra da matéria publicada nesta segunda-feira (25/08) ou a acesse AQUI no site do Jornal Zero Hora!
Sistema para acelerar atendimento médico na rede pública fez fila aumentar em 41,7%
Relatório do TCE-RS aponta ineficácia de software, que custou R$ 10 milhões ao Estado e quase R$ 4 milhões à prefeitura da Capital
O sistema de agendamento de consultas na rede pública implantado pelo Estado e pela prefeitura de Porto Alegre com o objetivo de reduzir filas e classificar prioridades e urgências se mostrou ineficiente.
por Cleidi Pereira*
Dados dos relatórios do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCE-RS), obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação, mostram que, em agosto do ano passado, quase 164 mil pacientes do Interior aguardavam 15,8 meses, em média, para atendimento com especialistas na Capital — aumento de 41,7% no tamanho da fila, em relação ao mesmo período de 2012. Atualmente, conforme a Secretaria Estadual da Saúde, chegou a 180 mil, três vezes mais do que o registrado no fim de 2011.
A implantação do software Aghos, feita pela GSH — Gestão e Tecnologia em Saúde, custou cerca de R$ 10 milhões ao Estado e quase R$ 4 milhões à prefeitura da Capital. Os contratos com a empresa foram assinados pela secretaria estadual em 2009 e pela empresa municipal Procempa em 2011, com vigência de 12 meses, mas se estenderam por quatro e dois anos, respectivamente.
Devido às deficiências e falhas técnicas, a ferramenta de gerenciamento, que também organiza a demanda por leitos, deverá ser substituída. Com isso, segundo o TCE, todo o investimento será perdido. “A conduta adotada pelo gestor que originalmente firmou o negócio, bem como pelos demais responsáveis que garantiram a continuidade do compromisso, foi danosa ao interesse público, sob os pontos de vista da legalidade, da eficiência e da economicidade”, diz trecho do relatório ainda não julgado.
Apesar de o Ministério da Saúde oferecer um software gratuito, o governo gaúcho optou pelo Aghos, desenvolvido pela empresa privada GSH, com unidades em Fortaleza e Porto Alegre. O motivo é que o sistema foi inicialmente implantado pela prefeitura de Pelotas, que cedeu as licenças de uso ao Estado, o que geraria uma economia aos cofres públicos. Na prática, segundo o TCE, esse racionamento de recursos não se concretizou, porque a implantação acabou custando cinco vezes mais do que o previsto.
Os dois relatórios do TCE analisados resultam de uma inspeção especial no executivo municipal e de uma inspeção extraordinária na Secretaria Estadual da Saúde. A finalidade das duas auditorias é avaliar o sistema de regulação de consultas adotado pela prefeitura e pelo Estado. As análises ainda destacam os poucos recursos financeiros destinados à saúde e a falta de recursos humanos, mas sem entrar em detalhes.
Na inspeção extraordinária na Secretaria Estadual da Saúde, que analisou os exercícios de 2009 a 2013, o TCE aponta irregularidades na contratação da empresa. Entre as quais, indevida inexigibilidade de licitação, ausência de adequada justificativa de preço, contrato reajustado acima do teto legal e aditivo contratual firmado com empresa impedida de contratar com o poder público. Além disso, erros no Aghos resultaram em perdas de consultas e de dados de pacientes em 2012.
O tribunal também indicou que havia risco de monopólio no fornecimento do software. Como o Estado contratou a empresa GSH por inexigibilidade de licitação, sob a alegação de ser a única fornecedora capacitada, induziu outros municípios (como Canoas e Porto Alegre) a fazerem o mesmo, cedendo as licenças repassadas por Pelotas. “Ao proceder assim, o Estado acabou por induzir a contratação dirigida da GHS, sem comprovação de que o sistema por ela ofertado é o único que atende às necessidades de regulação assistencial em saúde. E assim procedeu, mesmo tendo conhecimento das deficiências na qualidade dos produtos e serviços prestados por essa empresa”, descreve o documento.
Desde o primeiro contrato, com Pelotas, em 2008, a empresa faturou quase R$ 30 milhões no Rio Grande do Sul.
CONTRAPONTOS
Secretaria Estadual da Saúde:
Em nota, informou que abriu um “processo interno de apuração”, com o objetivo de averiguar possíveis irregularidades na execução do contrato, e que os pagamentos à GSH foram suspensos. A pasta afirma ainda que, desde 2011, o volume de serviços contratados da empresa vinha sendo reduzido. Segundo a nota, o sistema Aghos continua sendo utilizado em paralelo à implantação do Sisreg, o sistema gratuito do governo federal. Como a oferta de primeiras consultas disponíveis em Porto Alegre só pode ser acessada pelos municípios via Aghos, a desativação do sistema depende de uma decisão conjunta entre a prefeitura da Capital e o Estado.
Secretaria Municipal da Saúde:
Segundo o secretário de Saúde de Porto Alegre, Carlos Casartelli, a implantação do Aghos ajudou a diminuir o tempo de espera para consultas na Capital, que chegava a 11 anos em 2011. Na época, lembra o secretário, uma consulta com cardiologista demorava até oito anos, e hoje não passaria de 30 dias (em 2013, esse prazo era de três meses, conforme o Tribunal de Contas do Estado). Casartelli afirma que o sitema Aghos atende às necessidades, mas ressalta que a responsabilidade de avaliar a qualidade do software é da Procempa. Segundo ele, “quem deu o aval para que a Saúde utilizasse esse sistema e contratou a empresa foi a Procempa”.
Procempa:
Conforme o presidente da Procempa, Mario Luís Teza, o Aghos está em um “processo de descontinuidade”, e alguns dos módulos do sistema já foram substituídos pelo e-SUS, do governo federal. Teza diz que a mudança não tem relação com possíveis falhas do software, mas, com o “tempo de vida”. Segundo o presidente da estatal, o sistema “não foi contratado para resolver todos os problemas da Saúde”. Questionado sobre as conclusões do TCE – como contratação indevida por inexibilidade de licitação e ausência de fiscalização do contrato -, Teza afirmou desconhecer o relatório. Mas assegurou que o sistema ajudou a reduzir o tempo de espera por consultas especializadas na Capital.
GSH:
O diretor da GSH – Gestão e Tecnologia em Saúde, Rudinei Dias Moreira, afirma que a redução da fila prometida pelo Aghos depende da oferta de médicos. Moreira diz que o sistema “não funciona no Estado e em Porto Alegre porque desistiram de implantar”. O diretor assegura que nenhum dos apontamentos do TCE procede, e que o software — também utilizado em Canoas, Pelotas e Carlos Barbosa — funciona “muito bem”. Apesar de a implantação ter custado cinco vezes mais do que o previsto, Moreira alega que houve economia para o poder público. Conforme ele, a tecnologia custa cerca de R$ 60 milhões, e o Estado e a prefeitura arcaram apenas com customização e treinamentos.
Três anos de espera por atendimento
Nas consultas destinadas a moradores de Porto Alegre, a inspeção especial do Tribunal de Contas do Estado (TCE) revelou que 20 subespecialidades tinham, em agosto do ano passado, tempo de espera variando de um ano a três anos e meio.
Com 6,2 mil pacientes, a fila mais extensa, concluiu o estudo, era por neurologista, e o maior prazo para atendimento, estimado em 42 meses, estava em pneumologista (em razão de abandono do tabagismo).
Esse quadro, conforme o relatório que analisou os exercícios de 2010 a 2013, representa uma “sonegação de direito do acesso à saúde pública”. Na avaliação do TCE, o sistema de regulação das consultas implantado na Capital, o Aghos, demonstrou “ineficiência comprometedora” à gestão da saúde, colaborando com a situação já agravada pela insuficiência de recursos.
Outras capitais adotaram o e-SUS
A implantação do software, que deveria auxiliar no gerenciamento das filas, custou cerca de R$ 4 milhões à prefeitura e levou o dobro do tempo previsto inicialmente, mas não foi 100% concluída. O contrato foi encerrado em julho de 2013, após os questionamentos do TCE. A Procempa, que contratou a GSH, acabou por assumir a manutenção do sistema.
Entre as possíveis irregularidades apontadas pelo tribunal, estão falhas na segurança do sistema, com exposição do banco de dados e pagamentos realizados acima do valor contratado, além dos apontamentos também feitos no Estado.
O Ministério Público Estadual também instaurou inquérito civil para apurar o caso. No ano passado, a promotoria de Justiça de Defesa do Patrimônio Público recomendou a substituição do Aghos por um sistema de software livre, sem pagamento de licença e manutenção, chamado Sistema Nacional de Regulação (Sisreg), ou por uma versão ainda mais moderna, o e-SUS, em adoção em capitais como Belo Horizonte, Salvador, Brasília e Cuiabá.
Uma lista com mil pacientes
Há 15 anos, Terezinha Perin convive com o preconceito pelo excesso de peso. Há quatro anos, com a apneia que a impede de ter um sono tranquilo. Há três anos, com a espera pela cirurgia bariátrica que pode acabar com os dois incômodos. Aos 62 anos e pesando 123 quilos, a vendedora de roupas — que precisou parar de exercer a profissão por causa dos problemas de saúde — foi encaminhada para a cirurgia por uma médica clínica geral do Centro de Saúde Modelo, em Porto Alegre, em 2011.
Nesta subespecialidade — cirurgia de obesidade mórbida — o tempo médio de espera é de 23 meses. Só na Capital, mais de mil pessoas estão na lista. No ano passado, 30 meses após o encaminhamento, Terezinha começou o processo de passar pelas avaliações de diferentes especialistas do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, passo essencial para chegar à cirurgia. Ela já se sente pronta, mas está consciente de que há muitos na fila e estima que o sonho (que virou necessidade) se concretize apenas daqui a dois anos.
Com dificuldades para respirar, ganhou o direito de receber da prefeitura um aparelho, semelhante a um compressor de ar. Só com a máscara é que consegue descansar.
— Nem penso em dormir sem isso. Tenho medo. A obesidade é uma doença, está me matando — diz Terezinha.
Enquanto aguarda, faz caminhadas diárias e frequenta academia. Da janela do apartamento onde mora com o marido pode ver o Clínicas. As consultas marcadas no hospital têm amenizado a espera pela cirurgia sem data marcada.
Segundo o secretário de Saúde de Porto Alegre, Carlos Casartelli, o sistema estabeleceu diminuição das filas no início da implantação, em 2011, porque a forma de agendamento era “medieval”. Conforme o registro no Centro de Saúde Modelo, o pedido pela operação de Terezinha entrou no sistema somente em agosto de 2012.
Ainda segundo Casartelli, a demora na cirurgia de obesidade mórbida está relacionada com a baixa oferta porque há apenas seis centros no Estado habilitados para fazer esse procedimento pelo SUS.
*Colaborou Letícia Costa