O período de eleições municipais e o posicionamento da Justiça Eleitoral em julgamentos que envolvem candidaturas de ordenadores de despesa com contas reprovadas pelos Tribunais de Contas são, a meu ver, uma boa oportunidade para retomarmos a discussão a respeito da autonomia institucional das Cortes de Contas e dos predicamentos e garantias reconhecidos aos membros que as integram. Sem pretender discutir decisões judiciais, considero, em tese, equivocada a aceitação de candidaturas de gestores que tiveram contas reprovadas por Tribunais de Contas, em desacordo como o que determina a Lei Complementar 135, de 4 de julho de 2010, mais conhecida como a Lei da Ficha Limpa.
Inicialmente, é preciso fazer distinção entre conta de gestão e conta de ordenador de despesa. As contas de gestão são julgadas pelo Poder Legislativo. As contas de ordenadores de despesa são julgadas pelos Tribunais de Contas, e quem determina isso é a Constituição Federal. Muitas vezes, principalmente em cidades pequenas, o governante – no caso, o prefeito – também é o ordenador de despesa. O que a Justiça Eleitoral, em muitos casos, entendeu é que os Tribunais de Contas não têm competência para julgar contas de ordenadores de despesa de prefeitos. Então, vários Tribunais Regionais Eleitorais e o próprio Tribunal Superior Eleitoral vêm aceitando candidaturas de ordenadores de despesa que tiveram contas reprovadas por Tribunais de Contas.
O artigo 71 da Constituição Federal diz que o controle externo, a cargo do Congresso Nacional (no caso dos estados, a cargo das Assembleias Legislativas), será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União (nos estados, dos Tribunais de Contas dos Estados), ao qual compete julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiro, bens e valores públicos. Nesse passo, vale a pena reproduzir parte da decisão do Supremo Tribunal Federal – por unanimidade, diga-se de passagem – que afirma que “os Tribunais de Contas são órgãos do Poder Legislativo, sem todavia se acharem subordinados às Casas do Congresso, Assembleias Legislativas ou Câmaras de Vereadores. Que não são subordinados nem dependentes comprovam-no o dispositivo da Constituição Federal que lhes atribui competência para realizar, por iniciativa própria, inspeções e auditorias nas unidades administrativas dos três poderes”.
Segundo a Lei da Ficha Limpa, são inelegíveis os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos e funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa e por decisão irrecorrível do órgão competente (leia-se TCE), salvo se houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário para eleições que se realizem nos oito anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando o disposto no artigo 71 da Constituição Federal a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição. Aliás, o STF já decidiu, na Ação Direta de Constitucionalidade nº 30, que esta determinação da Lei da Ficha Limpa é constitucional.
A Lei Eleitoral repete isso. No meu entender, a intenção do legislador foi submeter os chefes do Poder Executivo, especialmente os prefeitos, nos casos em que acumulam as funções de governo com a de gestor público (ordenador de despesa), ao julgamento de suas contas pelos Tribunais de Contas, nos termos do inciso II do art. 71 da Carta Magna.
Ora, afirmar-se – conforme vem sendo afirmado em várias decisões da Justiça Eleitoral – que a competência para julgar ordenadores de despesa é do Poder Legislativo, e que os Tribunais de Contas não são portadores desta competência, posto que meros órgãos auxiliares deste Poder, é negar a Constituição da República e a contumaz jurisprudência do STF. É preciso, portanto, fazer um alerta de que qualquer decisão da Justiça Eleitoral que considere os Tribunais de Contas incompetentes para julgar contas de ordenadores de despesa de prefeitos está em desacordo com o que decidiu a mais alta Corte de Justiça do País.
JONAS LOPES DE CARVALHO JUNIOR
Presidente do TCE-RJ