João Antonio
A era da intransigência
Vivemos tempos em que a intransigência se tornou marca registrada das relações humanas. Seja nos espaços públicos, nas redes sociais ou até mesmo em círculos íntimos, a escuta atenta e o respeito ao contraditório estão cedendo lugar a posições rígidas e confrontos estéreis. A polarização, alimentada por discursos intransigentes e simplificadores, transforma adversários em inimigos e reduz o debate democrático a uma disputa rasa de poder e vaidade. Essa postura ameaça não só a convivência pacífica, mas fragiliza o próprio pacto civilizatório que sustenta uma sociedade marcada pela pluralidade.
Diferenças: problema ou potência?
A diversidade — de ideias, crenças, culturas e trajetórias — é uma das maiores riquezas das sociedades contemporâneas. Longe de ser obstáculo, ela representa oportunidade de aprendizagem mútua e avanço coletivo. Para que essa riqueza se transforme em força, é essencial reconhecer o outro como legítimo em sua diferença. Isso exige maturidade democrática, disposição real para o diálogo e, acima de tudo, respeito. Quando divergências passam a ser tratadas como ameaças, e não como motores de renovação, a democracia perde vigor.
“Divergências não devem ser sufocadas: são o motor que move o debate democrático.”
Democracia não é consenso
É importante lembrar que democracia não se confunde com consenso absoluto. O consenso pressupõe uma uniformidade de opiniões que simplesmente não é possível em sociedades de massa, compostas por milhões de pessoas reunidas em Estados nacionais marcados por trajetórias históricas, valores e experiências culturais distintas. Longe de representar fragilidade, essa pluralidade é justamente o que confere força e vitalidade à democracia. É não apenas natural, mas essencial que existam divergências, pois são elas que renovam ideias, questionam certezas consolidadas e enriquecem o debate público.
O desafio não está em eliminar as diferenças, mas em transformá-las em oportunidades de construção coletiva.
O valor da composição
A convivência democrática exige mais do que simples tolerância; exige, sobretudo, a capacidade de composição. Essa habilidade — que pressupõe escuta atenta, negociação e concessões recíprocas — tem sido cada vez mais relegada a segundo plano, sacrificada em nome de fidelidades doutrinárias absolutas, muitas vezes transformadas em dogmas inquestionáveis. No entanto, sem diálogo e disposição para construir acordos, não há solução duradoura para os conflitos, tampouco governabilidade efetiva. Resgatar o diálogo como instrumento central da vida pública é urgente para que a democracia enfrente os desafios atuais e continue a existir como patrimônio coletivo de todos.
A soma das partes versos imposição do todo
Na democracia, é justamente a soma das partes que constrói o todo. Opiniões divergentes não devem ser sufocadas, pois são estímulo necessário para o diálogo e a convivência equilibrada. Conviver democraticamente não significa apagar diferenças, mas reconhecê-las e, a partir delas, buscar soluções coletivas que expressem a complexidade social.
Nos regimes autoritários, a lógica se inverte: o todo — representado pelo pensamento uniforme imposto pelo poder — sufoca as partes. Não há espaço para dissenso, negociação ou composição; a uniformidade é celebrada como virtude, enquanto as vozes discordantes são sistematicamente silenciadas. Nesse contexto, o pluralismo — fundamento essencial da democracia — cede lugar à imposição de uma única verdade oficial. É justamente por isso que defender a diversidade e proteger o direito ao dissenso não são gestos acessórios, mas atos indispensáveis para manter viva a democracia.
E constante transformação
Como escreveu Norberto Bobbio, “o futuro da democracia é estar sempre em transformação”. Por ser fruto da convivência entre diferenças, a democracia nunca será um modelo pronto ou definitivo: ela está em construção permanente. Renova-se a cada debate, a cada acordo e a cada geração disposta a defendê-la e reinventá-la. É justamente nessa abertura ao novo, nessa capacidade de acolher e valorizar a pluralidade, que reside sua maior força — e sua esperança de continuidade.
João Antonio é conselheiro do TCM-SP e vice-presidente da Atricon