A felicidade pela leitura

Valdecir Pascoal

Aprendi a ler na idade certa, por volta dos seis anos. Além de frequentar uma boa escola, tive a sorte de crescer em um ambiente familiar favorável e inspirador à leitura, em que a educação sempre teve prioridade. Meu pai, que só cursou os primeiros anos do (hoje) ensino fundamental, nunca mediu esforços para investir na educação dos seis filhos. Minha mãe era professora e, naqueles meados dos anos setenta, diretora da escola pública em que eu estudava. A vida modesta do sertão não me impediu de ter acesso à leitura. Na salaprincipal da nossa casa havia uma estante repleta de livros de gramática e literatura. É uma das memórias mais vívidas de felicidade que carrego.

Eu sabia todos os títulos de cor, mas um deles sempre me chamou a atenção: “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos. Na capa marrom daquela edição, o desenho de um retirante em movimento, sob um sol a pino, acompanhado por uma cachorrinha, levando um saco amarrado numa vara sobre os ombros. Só mais tarde, pude compreender a dimensão humana e social daquela obra, cujos personagens principais, Fabiano e Sinhá Vitória, continuam sendo o retrato de muitos brasileiros privados do acesso à alfabetização e a uma educação digna, emancipadora e construtora de futuros.

Adianto os ponteiros do relógio da vida. Os livros e a educação continuam a cruzar o meu destino. O TCE-PE, não é de hoje, elegeu a política pública da educação como uma de suas prioridades de atuação fiscalizadora. Além do exame da legalidade dos gastos, ganha destaque, a cada dia, um olhar mais agudo para a qualidade das ações governamentais, com foco na eficiência e nos impactos reais na vida das pessoas. Nesta nova oportunidade de presidir o órgão, embarco no trem já veloz sobre os trilhos certeiros da primeira infância. O nome da próxima estação? “Saber Ler na Idade Certa”.

Um breve parêntese sobre a dura realidade que envolve esse tema. Mesmo diante dos avanços das últimas décadas, o elevado número de analfabetos ainda é constrangedor: 10 milhões de brasileiros não sabem ler. Outro dado preocupante, segundo o último SAEB (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica): apenas 27% dos alunos das redes públicas municipais em Pernambuco aprendem a ler e a escrever na idade certa, até o fim do 2° ano do ensino fundamental, entre os 6 e os 7 anos. Para ajudar a melhorar esse quadro, que compromete a formação básica da criança, o seu futuro e o do país, o TCE-PE acaba de criar o ICA – Índice de Compromisso com a Alfabetização, composto por cinco eixos que devem ser observados pela gestão: (a) legislação; (b) adesão às parcerias nacional e estadual; (c) formação de professores alfabetizadores; (d) material didático de apoio e (e) monitoramento da aprendizagem. O primeiro ciclo do diagnóstico já foi divulgado (veja os resultados em: bit.ly/3VaX72F).

Com base nas respostas fornecidas pelos 184 municípios, conclui-se que 85% deles enfrentam sérias dificuldades no atendimento aos compromissos essenciais. A nota média foi de 3,9 numa escala que vai a 10. É bom lembrar que já tivemos desafios institucionais semelhantes em áreas como transparência municipal e lixões. O segredo da melhoria dos indicadores foi a realização periódica desses diagnósticos, capacitações, a abertura de auditorias para aferir a evolução do desempenho dos órgãos e a eficiência das ações, além das parcerias efetivas com os gestores, entidades representativas, demais órgãos de controle e a sociedade. Esse trem da educação não tem volta. Fecho o parêntese e retomo as leituras.

A propósito da alfabetização e do que o “saber ler” pode representar na vida de uma pessoa, conto uma historinha encantadora narrada por Clarice Lispector na crônica “Felicidade Clandestina”. Nascida na Ucrânia, a futura escritora veio para o Brasil aos dois anos, morando no Recife dos 4 aos 14 anos, justo na época da descoberta das letras e de sua magia. Ela retrata a verdadeira saga de sua experiência com o livro “Reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato. É que o livro pertencia a uma amiguinha da escola, um tanto egoísta e malvada, filha do dono da livraria. A amiga prometia, mas nunca emprestava o livro, tendo sempre uma desculpa esfarrapada. Até que um dia a mãe da “menininha má” ouve a história, “liberta” o livro e a narradora da crônica (de fato, Clarice) passa a saboreá-lo em plenitude, aproveitando cada segundo da leitura, pois sabia que aquela felicidade seria passageira.

Há outras tantas histórias encantadoras sobre a felicidade e a importância da leitura. Duas singelas sugestões: “O Menino que Vendia Palavras” (Ignácio de Loyola Brandão) e “A Menina que Roubava Livros” (Markus Zusak). Volto à “Vidas Secas”. No capítulo final, Fabiano e Sinhá Vitória, cansados das lutas, decidem migrar e tentar uma nova vida na cidade grande. Na partida, conta o narrador, eles expressam um misto de lamento e esperança. Sobre Fabiano: “Nunca vira uma escola. Por isso não conseguia defender-se, botar as coisas nos seus lugares”. A esperança estava no desejo de um futuro melhor para os dois filhos pequenos: “Os meninos frequentariam a escola, seriam diferente deles. Na escola, eles aprenderiam coisas difíceis e necessárias”.

Valdecir Pascoal – Presidente do TCE-PE

*Publicado na edição de 18 de março de 2024 do Jornal do Commercio