Artigo publicado no Blog de Fausto Macedo, do Estadão.
Sou um membro de Tribunal de Contas e cheguei a essa condição por meio de um concurso público de provas e títulos que eu considerei duríssimo. Não é todo mundo que sabe da existência de membros concursados nos Tribunais. Então explico. Há duas categorias de membros, uma delas de concursados, os Auditores, que, no entanto, podem menos em relação à segunda classe, a dos Conselheiros, que dão a palavra final em processos e na direção do órgão.
Eles são indicados. Todos nós, no entanto, cumprimos cinco condições: reputação ilibada, idoneidade moral, notórios conhecimentos de administração pública, 10 anos de carreira e 35 anos de idade.
Embora os atritos entre Auditores e Conselheiros sejam frequentes, sinto-me lisonjeado por essa ordem de coisas. Já dividi bancada com Constituintes, membros distintos do Ministério Público, Presidentes de Assembleia, autores consagrados, servidores com décadas de serviço público prestado, técnicos e políticos experientes. Enquanto essas pessoas já têm as suas histórias escritas, eu vou rascunhando a minha.
Costumo dizer que sou político também. Espero que aqueles que cravaram o adjetivo por meio do voto, trilha mais honrosa e legítima, não se ofendam comigo. Se perguntarem quando é que me tornei político, vou responder que não sei dizer se houve momento exato, mas soube quando estava feito. Foi um misterioso e surdo trabalho de crisálida. Estar no Tribunal de Contas certamente precipitou a convolação.
Já ouvi quem dissesse que a Lei deveria ser reformada para dificultar o acesso, referindo-se à entrada de políticos. Tento nunca assimilar reclamações como ofensa pessoal, mesmo porque quando o cidadão formula crítica ao servidor público deve-se ter presente que quem fala é o patrão, mas, pensando ter exaurido o que me incumbe, cheguei a algumas conclusões.
Em primeiro lugar, vejo que a sociedade não se interessa pelas seleções de Conselheiros. A escolha de um Ministro do TCU, por exemplo, é dos eventos mais raros da Esplanada, nada obstante, pouco comenta-se na imprensa.
Ninguém faz campanha aberta para o posto, é algo da intimidade do poder. Ninguém pergunta para jornalista, professor ou especialista se fulano ou beltrano é bom, vai mais da relação de quem quer ser com quem pode indicar.
Raramente são considerados servidores do quadro ou Membros de Tribunais Estaduais. E olha que isso tudo para investir alguém no xerifado da probidade administrativa, que é o bem mais caro à sociedade brasileira. Em suma, com todo o respeito, a culpa também é de quem reclama, se dá de ombros para a escolha.
Em segundo lugar, as denúncias sobre membros são, em boa parte, imprecisas, genéricas ou mordazmente estendidas a todos da categoria. Há pressão para que ninguém reclame da generalização, pois quem não deve não teme, mas o fato é que os piores acabam protegidos pela percepção difusa sobre a qualidade do quadro. A incerteza e a falta de julgamento os torna, por fim, incógnitos, em um borrado indistinguível entre os demais, que confundem-se. Talvez os acusados desejem retardar os seus julgamentos, mas os demais membros merecem um julgamento pronto e isento daqueles que são acusados. Sem um Tribunal de Contas dos Tribunais de Contas, e esta é a proposta do Conselho Nacional dos Tribunais de Contas, não há como dizer joio de trigo.
O Tribunal de Contas não é sistemas, edifícios ou documentos, ele é essencialmente pessoas. Cada vez que uma pessoa merecedora entra, sinto-me mais digno, cada vez que uma pessoa não merecedora entra ou permanece, sinto-me menos. E assim, independentemente de meu esforço pessoal, flutua o meu acervo moral. Que fazer? Só me é dada a marcha, e se me apego à ideia de que o que faço faz diferença, é porque creio que o caminho do justo é como luz da alvorada, que brilha mais e mais até ser dia perfeito.
Recentemente ouvi o advogado Marcelo Harger citar o Pastor Luterano Martin Niemöller:
“Quando os nazis vieram buscar os comunistas, eu fiquei em silêncio; eu não era comunista.
Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu fiquei em silêncio; eu não era um social-democrata.
Quando eles vieram buscar os sindicalistas, eu não disse nada; eu não era um sindicalista.
Quando eles buscaram os judeus, eu fiquei em silêncio; eu não era um judeu.
Quando eles me vieram buscar, já não havia ninguém que pudesse protestar.”
Espero ser bem compreendido, pois não tenho a intenção de comparar ninguém de antes a ninguém de agora.
Interessa-me apenas fazer alusão a ideia de que a paz é alcançada quando todos brigam por todos, pois cidadania não é somente dar a cada um o que é seu, é não permitir que outros tomem o que não é deles.
O papel constitucional de fiscalizar a regular aplicação dos recursos públicos é dos Tribunais de Contas. Por que a sociedade não bate à porta deles para exigir que eles sejam tudo que ela anseia? Por que não exige que apenas notáveis críticos da administração pública entrem? Quais são as sugestões do próprio sistema de Tribunais de Contas para melhorar a sua ação? Elas são possíveis de atendimento?
Sempre achei que as revoltas do ano passado reclamavam por mais Controle Externo, mas, antes, tínhamos uma turba inumerável de vozes na sociedade reclamando atenção. Recentemente, no entanto, dividiram-se e opuseram-se. Espero que essa cisma centelhe energia suficiente a eletrocutar as instituições de volta aos seus ânimos democráticos. Um grande político disse recentemente que ao vitorioso é negada a soberba, e, a quem perde, é negado o rancor. Concordo com ele, pois a acomodação é o aparato de violência que nos oprime e nos distancia da paz, que somente é possível através da incessante luta pelo Direito.
*Alexandre Manir Figueiredo Sarquis é Conselheiro Fiscal da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil – Atricon.