Em oportunidade anterior, publicamos o texto intitulado “A Pós-verdade da Previdência Social”. Nele, alertamos sobre as possíveis emoções e crenças sociais e pessoais que poderiam contaminar uma análise mais técnica e adequada da reforma da Previdência. Na ocasião, o texto da reforma tinha acabado de chegar ao Parlamento e concluímos nossa breve manifestação defendendo a necessidade de uma ampliação significativa do debate e clamando à sociedade para fazer sua parte, participando das discussões, das audiências públicas, apresentando sugestões aos Parlamentares e tentando adquirir mais informações para não cair nas armadilhas das pós-verdades.
Pois bem. Chegou o momento! Na primeira semana de maio (07/05), a Comissão Especial da Câmara dos Deputados, que vai analisar o mérito da PEC n.º 06/2019, iniciou seus trabalhos. Conforme foi divulgado, estão previstas 11 audiências públicas com cerca de 60 convidados para debater a tentativa de reforma da Previdência apresentada pelo Presidente da “nova política”.
Antes de qualquer abordagem sobre a atual proposta, deve-se registrar que o Brasil, desde a promulgação da CF/1988, já passou por outras reformas que repercutiram na Previdência. Precisamente, foram seis reformas por que já passamos. A primeira delas veio com a EC nº 03/1993, que instituiu contribuições da União e dos seus servidores para o custeio das aposentadorias e pensões. Em 1998, a EC nº 20, conhecida como ‘Reforma da Previdência’, entre outros aspectos, instituiu a idade mínima para aposentadoria. Mais tarde, a Emenda Constitucional nº 41/2003 fixou, entre outras determinações, tetos máximos para vencimentos, aposentadorias e pensões nas três esferas e extinguiu o princípio da integralidade, pelo qual os servidores civis se aposentavam, voluntariamente, fazendo jus a sua última remuneração, desde que preenchidos os requisitos de tempo de contribuição, idade mínima, dez anos de serviço público e cinco no cargo em que se daria a aposentadoria. Em 2005, a EC nº 47 criou critérios diferenciados para as aposentadorias dos deficientes, de pessoas que trabalhem sob condições especiais prejudiciais à saúde e das que exerçam atividades de risco. A EC nº 70/2012 determinou a revisão das aposentadorias por invalidez concedidas na vigência da CF/1988, para que o cálculo passasse a ser feito com base na média aritmética das remunerações, e não com base na última remuneração do servidor. E, finalmente, a EC nº 88/2015 veio para alterar a idade de aposentadoria compulsória do servidor, passando de 70 para 75 anos de idade. Como se vê, esta não será a primeira e provavelmente não será a última reforma no âmbito da Previdência. Vários ajustes já foram feitos. Por exemplo, desde 2003 os servidores públicos no Brasil não têm mais direito à integralidade. Portanto é preciso muita cautela! O que for mudado hoje provavelmente precisará ser mudado novamente daqui a alguns anos. Não existe vara de condão! A situação é complexa e, seguramente, novas mudanças nas regras previdenciárias não podem ser vistas como únicas soluções. Não se pode apostar todas as fichas nesta reforma (e a tão esperada reforma tributária com a taxação das grandes fortunas? E a questão da vertiginosa e crescente dívida pública?). Ela não será a chave da abóbada para a crise política e econômica do país e não pode ser feita isoladamente. Além desse necessário registro das reformas anteriores, destacamos três aspectos de suma relevância para o atual debate da Previdência.
Percebe-se, claramente, que esta reforma em baila foca suas mudanças na figura do contribuinte. Ou seja, não se fala no problema do financiamento da Seguridade Social como um todo. Por que não se discutem alterações para tratar do aumento das contribuições (CSLL, Cofins, PIS), das receitas de prognósticos (loterias)? Por que não se trata das questões das renúncias de receitas e das desonerações? Por que não se estabelecem regras rígidas de cobranças e restrições às empresas devedoras da Previdência? Estima-se, de acordo com o levantamento da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), que as dívidas de empresas com a Seguridade Social atingiram, em fevereiro de 2017, o montante de R$ 935 bilhões. Pelo que o Governo tem divulgado, é algo em torno disso (próximo a 1 trilhão de reais) que se pretende, num cenário bem otimista, economizar em dez anos com a reforma. Destarte, essa questão dos grandes devedores não pode ser alijada do debate. Os empregados e servidores públicos não podem ser os únicos a pagarem o preço da reforma. Seguramente, essa categoria não é a vilã da Previdência, como alguns tentam insinuar. As regras estabelecidas não são pactuadas com os servidores, que não participam da gestão dos fundos de previdência ou pensão. Para se ter uma clara ideia de que esta conta tem recaído apenas nos ombros (bolsos) dos servidores, no Estado da Bahia, por exemplo, já há alguns anos, o Regime Próprio de Previdência, o Funprev, tem passado por mudanças de forma a aumentar a contribuição dos servidores estaduais. Em 1993, a alíquota cobrada sobre o total da remuneração para garantir a aposentadoria era de 8%. Registre-se, porém, que nessa época a alíquota cobrada ainda incluía os benefícios médicos e odontológicos. Em 1999, a alíquota baixou para 5%, quando o benefício ficou restrito às questões previdenciárias. A partir daí, a alíquota só fez crescer. Em 2000, foi para 6,5%, em 2001 subiu para 8%, subindo para 11% em 2003, e 12% em 2004. Neste ano de 2019, mais uma elevação de alíquota foi promovida, passando para 14%, tendo como justificativa a premente necessidade de ajuste nas contas da Previdência Estadual. Ou seja, em 20 anos, a alíquota passou de 5% para 14%, aumentando 9% (crescimento de 180%). Essa será a última? Tem como chegar a cobrar 15%, 18%, 20% dos servidores? Será esse o melhor caminho? As reformas devem focar apenas na figura do empregado contribuinte? Os aumentos reiterados das alíquotas, bem como a elevação das idades mínimas de aposentadoria, são medidas paliativas, que trazem soluções meramente episódicas, não resolvendo a questão macro da Previdência. Esse é o primeiro ponto que sinalizamos.
Como servidores atuantes do sistema de controle da Administração Pública, enxergamos com muita clareza que o domínio e conhecimento dos números, dos dados quantitativos, são fundamentais para se compreender e buscar mudanças em qualquer área. E essa é uma grande fragilidade nesta reforma da Previdência. Quanto é o déficit da Previdência, qual é o real rombo? Quanto se irá economizar com as medidas adotadas? No nosso entender, esses números tinham de estar na ponta da língua do Governo, e a sociedade precisa ter acesso detalhado a todas essas informações quantitativas. Esse é o segundo aspecto.
Uma outra (terceira) questão fundamental é a regra de transição. É absolutamente necessário se estabelecer regras de transição que sejam efetivamente justas, razoáveis e equilibradas. Como dito, já houve seis reformas anteriores na Previdência, e regras de transição foram estabelecidas pelas emendas constitucionais de 1998, de 2003 e de 2005. Portanto existem milhares de servidores públicos ainda em atividade que estão usufruindo dessas regras, o que lhes dão direito adquirido a essas disposições. Já pensou se cada governante promover alterações sem observar regras de transição anteriormente fixadas? A reforma atual não pode ignorar ou abandonar essas regras vigentes e precisa ser editada em harmonia com os textos anteriores.
Nesses primeiros debates e apresentações no Congresso Nacional, estamos vendo várias declarações contundentes e até apelativas do Governo visando uma aprovação apressada e integral do texto apresentado. O Ministro Paulo Guedes, no seu discurso durante o 31º Fórum Nacional, promovido pelo Instituto Nacional de Altos Estudos (INAE), chegou a declarar que “na reforma da Previdência eu deixei mesmo o clima de Fla-Flu. É tudo ou nada”. Na primeira audiência pública na Câmara, este mesmo Ministro declarou que a “velha Previdência (a que vigora) é uma fábrica de privilégios”. Como já defendemos, estão tentando incutir na cabeça do brasileiro a ideia de que as aposentadorias, principalmente as dos servidores, são os grandes entraves para uma retomada do crescimento econômico.
Não se pode perder de vista, e essa deve ser uma premissa básica nesses debates, que a Previdência não se resume à questão de se equilibrar contas, mas também serve como instrumento para equilibrar injustiças sociais, como o exemplo do trabalhador rural. A Previdência possui a inequívoca função de combater e tentar mitigar o imenso passivo social que assola o país há anos. É cediço que em boa parte dos 5.570 municípios brasileiros as receitas com os benefícios previdenciários superam, em muito, outros tipos de receitas, como as das repartições tributárias oriundas do Fundo de Participação dos Municípios (FPM). No Estado do Ceará, por exemplo, recente pesquisa encomendada pelo Jornal “Povo”, e divulgada em abril deste ano, mostra que, em apenas 18 dos 184 municípios cearenses, os repasses do fundo foram maiores que os benefícios previdenciários em 2018. Com isso, pôde-se inferir que em 91% das cidades do Ceará a fatia representada pelas aposentadorias foi superior ao montante que chegou pelo FPM. Então, é absolutamente relevante a função social da Previdência, inclusive para as economias locais.
Concluímos aqui reiterando posicionamento anterior e clamando à sociedade a buscar informações reais e verdadeiras, ampliando seus conhecimentos sobre a matéria. Registre-se que não somos contra a Reforma. Filiamo-nos aos 59% da população (conforme apontou pesquisa do Ibope a pedido da Confederação Nacional da Indústria) que entendem ser necessária. Porém não estamos diante de uma partida de futebol, que tem um contra o outro, que terá vencedor e derrotado. É preciso conciliar, debater, ajustar! Não pode ser do jeito integral que quer o Governo. Enxergamos a Previdência atual não como uma suposta “fábrica de privilégios”, mas como um fundamental instrumento de mitigação do imenso passivo social, que, como qualquer mecanismo dependente de grandes aportes de recursos, deve sofrer adaptações, mas sempre preservando direitos adquiridos. Ao final e ao cabo, temos a convicção de que a andarilha verdade sempre prevalecerá. Afinal, como nos ensina o dito popular, “a mentira corre e cansa, e a verdade anda e alcança”.
Inaldo da Paixão Santos Araújo
Mestre em Contabilidade. Contador. Conselheiro-corregedor do TCE/BA. Professor. Escritor.
Luciano Chaves de Farias
Mestre em Políticas Sociais e Cidadania. Advogado. Secretário-geral do TCE/BA. Professor. Escritor.