Acertando as contas com a Ficha Limpa

Por Valdecir Pascoal*

Ao tratar das prestações de contas de gestores, a Constituição instituiu duas modalidades: as contas de governo e as contas de gestão.

As primeiras tratam de compromissos mais gerais do chefe do Executivo, a exemplo dos balanços e relatórios dos planos, sendo julgadas pelo Poder Legislativo com base em parecer prévio emitido pelo Tribunal de Contas.

Já as chamadas contas de gestão refletem o processamento completo de todas as despesas públicas.

Elas são de responsabilidade dos administradores e de todos aqueles que, de alguma forma, contribuem para a edição de atos de gestão (realização de despesas, licitações, contratações, pagamentos, etc.), cabendo ao Tribunal de Contas julgá-las, sem participação do Legislativo.

Comprovando-se irregularidades graves, esse julgamento pode ensejar a determinação de ressarcimento ao erário, aplicação de multas e a eventual representação aos órgãos competentes para fins de ações penais, de improbidade e de inelegibilidade.

Ante esses contornos constitucionais, que consagram a natureza dualística das contas, conclui-se que se um prefeito, por exemplo, decidir, por vontade própria, assumir a ordenação de despesas, ele se iguala a qualquer administrador e terá as suas contas de gestão julgadas pelo Tribunal, com todas as consequências no campo das responsabilizações.

Inspirada neste entendimento, a Lei da Ficha Limpa estatuiu que tal julgamento, por parte do Tribunal, tem o poder de causar a inelegibilidade do gestor, tese considerada constitucional pelo STF, em 2012, no julgamento das das ADCs 29 e 30.

Nada obstante, em recente decisão, o mesmo STF, por diferença de um voto, mudou a posição anterior, atribuindo às Câmaras de Vereadores a competência para o julgamento das contas de gestão do prefeito.

Esse entendimento conferiu uma espécie de “foro privilegiado” ao chefe do Executivo, deixando de lado o critério da natureza das contas.
Essa nova posição, às vésperas das eleições de 2016, significou um enfraquecimento da Lei da Ficha Limpa, visto que, na prática, imunizou cerca de 6.000 prefeitos e ex-prefeitos que tiveram contas de gestão julgadas irregulares pelos Tribunais.

Vale lembrar que, nas eleições de 2012, duas em cada três das impugnações decorreram do julgamento realizado pelos Tribunais.
Esclareça-se, contudo, que, ainda que o STF não houvesse mudado o entendimento, nem todos estes gestores ficariam inelegíveis.

A lei exige que, para tanto, as irregularidades devam ser graves, atos de improbidade dolosa, como desvios, desfalques e fraudes.
Há chances de o STF rever essa posição? Decerto que sim. Com efeito, quando se está no terreno, amiúde movediço, da hermenêutica constitucional, é muito difícil falar em verdades absolutas e estáticas.

Não esqueçamos de Kelsen e da sua sempre atual “moldura de interpretações razoáveis”.

Isso quer dizer que, entre interpretações razoáveis – e, portanto, respeitáveis -, é sempre possível se buscar aquela que confira máxima efetividade a todo o sistema constitucional.

A propósito, agora mesmo o próprio STF trilhou essa senda, ao alterar a sua posição histórica sobre a possibilidade de execução da pena antes do trânsito em julgado.

O julgamento técnico, e não político, das contas de gestão de chefe do Poder Executivo pelos Tribunais de Contas, além de constitucionalmente coerente, implica garantir efetividade aos demais dispositivos constitucionais e legais que possibilitam a responsabilização de agentes e, ao mesmo tempo, protegem a democracia e a gestão daqueles que não souberam honrar os valores fundamentais da República.


*Valdecir Pascoal é presidente da Atricon (Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil) e conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco.