“Vou-me embora pra Passárgada
Lá sou amigo do rei
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei”
Manuel Bandeira, 1930
Nicklas Luhmann foi um sociólogo alemão verdadeiramente prodigioso. Em um acervo de mais de 14.000 páginas impressas, filosofou sobre sistemas sociais com metodologias surpreendentemente próximas àquelas encontradas em outras áreas, como as ciências exatas e as biológicas: falava de sistemas abertos e fechados, de ação externa e de trajetória. Ainda assim arrematava conclusões perfeitamente válidas e relevantes na seara das ciências sociais.
Teorizou, por exemplo, que um sistema social fechado, imune às provocações que lhe eram propostas pelo ambiente (a que chamava de irritações – Irritierungen), acabaria refém de seu processo de autopoiese, ou seja, da maquinação de conceitos, problemas e relações que somente contam com significado, utilidade ou interesse dentro do próprio sistema, enfim embotado em complexidade autorreferenciada.
Vou arriscar uma aplicação da ciência social criada por Luhmann de volta às áreas de exatas que o inspiraram. Às ciências atuariais, para ser mais preciso. Se o conceito do déficit atuarial desconhece a interferência de outros objetivos ou considerações, acaba autorreferenciado, enviesado e inútil. Mais até: perigoso, pois faz as vezes de legitimação para um sem-número de medidas que avocam ares de tecnicamente apuradas e financeiramente responsáveis.
Quem sabe um exemplo ilustre melhor o que quero dizer. Imagine Passárgada, um ficcional município brasileiro com dois fictícios problemas: um “rombo” na previdência de seus servidores e uma dificuldade em perfazer gasto mínimo de 25 % da receita de impostos no ensino básico (FUNDEB).
Suponha ainda que o compromisso financeiro para equacionamento do regime próprio de previdência social por aquelas bandas gire em torno de prestações mensais de R$ 1 milhão, mobilizando naco expressivo do orçamento público. Pior: mesmo envergando essa pesada conta mensal, o déficit atuarial se mantenha resistente na marca de R$ 100 milhões, preocupando a todos. Algo há de ser feito!
Analisando meios de pagamento da municipalidade, entretanto, depara-se com o segundo problema a que me referi: escolas municipais que, embora precárias, são surpreendentemente bem localizadas. Na ilusão de que esses espaços estariam desembaraçados para iniciativas comerciais, são avaliados pelo admirável valor patrimonial de R$ 100 milhões.
E se entregarmos isso por aquilo?
Mas veja: não seria levianamente que se fariam tais operações, definitivamente não! Por óbvio que não se poderia simplesmente obrigar escolas para dentro do imobilizado do RPPS e esperar que ele renunciasse à cobrança do que, por direito, lhe passaria a ser devido! Todos cerram o semblante, dão socos à mesa, discursam e, ao fim, fazem questão que se recorra àquela regra de bolso de acordo com a qual o bom aluguel de um imóvel deve corresponder a 1% de seu fundo patrimonial. Com isso, a prestação mensal é estimada em R$ 1 milhão.
Pobre Passárgada. Até mesmo essas austeras preocupações se provarão mal agouro. Veja, em primeira análise a decisão de pagar o arrendamento parece circular à mesma deficiência que inicialmente se tinha, pois se o erário mal suportava obrigações previdenciárias de R$ 1 milhão, como passaria, de súbito, a pagar R$ 2 milhões? Mas aí a autopoiese começa a operar as suas pequenas maravilhas.
Isso porque uma vez que o déficit original logrou ser integralmente solucionado com a audaciosa escaramuça contábil da dação em pagamento, tornou-se absolutamente desnecessário aquele primeiro plano de equacionamento, restando tão somente a segunda obrigação financeira. O resultado é que o mesmo valor de obrigações que o Município já vinha pagando e que, bem ou mal, já estava acostumado, permaneceria em efeito.
Pronto. Aportes se tornam aluguéis, R$ 2 mi se transformam em R$ 1 mi, déficits viram superávits e alhos viram bugalhos, apenas as escolas públicas que permanecem iguaizinhas.
Mas como tal solução auxiliaria a educação básica, você perguntaria? Ora, com mais retroalimentação conceitual! Aluguéis, ao contrário de aportes, constituem gastos válidos para absorção no FUNDEB, um procedimento que embora não debatido abertamente, vem sendo tacitamente tolerado (STF MS 37602 AgR d.j. 15.05.2023). Então, a marca de 25% de aplicação mínima em educação (art. 212 CF/88) ficaria mais próxima – quem sabe até mesmo superada.
Quem poderia imaginar? A solução de todas as agruras de Passárgada era clara desde o início: não fazer nada! Ou melhor, destinar recursos para outras áreas, não deficitárias. Ou melhor, ter um cálculo de déficit atuarial que reporte a análise acima, para depois fazer essa destinação. Ou, ainda melhor, ter tudo isso e não receber censuras do Tribunal de Contas que, imagino eu, nem funcione por lá.
A questão é que do nada não pode surgir algo, muito menos algo do tamanho de R$ 100 milhões de reais. O caso todo lembra aquela outra historinha da roupa nova do rei (Hans Christian Andersen) em que um menino pergunta, com a ingenuidade que é tão peculiar nas crianças, porque o Rei estava nu em praça pública.
A pergunta que me permito – com confessada ingenuidade – é o que é “déficit atuarial”? Pois a mim parece que deva ser a diferença entre o esforço imaginado pela sociedade e consistente com o que tem sido feito e com o que pode razoavelmente vir a ser feito para satisfazer alguma obrigação, quando comparado com o esforço de fato necessário para efetivamente alcançar a solução almejada. Sob esse significado, “equacionamento de déficit” passa necessariamente por frustração de expectativas ou surgimento de dinheiro inesperado.
Mais importante: se não fazemos “nada”, não deve ocorrer qualquer mudança perceptível na variável “déficit atuarial”, independentemente de quantos decretos, atos, leis ou outros papéis sejam impressos, assinados, afixados no mural, autenticados no cartório ou publicados no diário oficial.
Talvez a resposta à minha indagação seja que eu ignoro o conceito técnico de “déficit atuarial” e que para que tal cognição se aperfeiçoe é indispensável domínio completo de um repertório de técnicas e cálculos obscuros. Se esse for o caso, então vou concluir – sem qualquer ingenuidade – que se trata de um sistema fechado e de limitada utilidade para o ambiente que pretende auxiliar.
Na França, em 17 de dezembro de 2012, em meio a uma especialização do Tribunal de Conta Francês, foi criado o Alto Conselho das Finanças Públicas, cuja missão principal é apreciar os planejamentos e advertir os gestores acerca do realismo de suas previsões (Loi Organique Relative à la Programation et à la Gouvernance des Finances Publiques). O realismo do que se propõe é o cerne.
Enfim, cogitar que, à míngua de receita previdenciária suficiente no futuro, um município leiloaria suas escolas é presunção grosseiramente imprecisa. Da mesma forma – a menos que um robusto projeto já estruturado e em vias operacionais já esteja implementado – , em primeira análise, parece claro que o RPPS não securitizaria royalties ou certidões da dívida ativa, não teria forças para obrigar administração vindouras a multiplicar expressivamente os repasses para o regime, não lograria alienar receita de IRRF de benefícios ainda a empenhar, não despejaria a Câmara de Vereadores ou os ocupantes dos jazigos nos cemitérios, não faria eficazmente contrato de cessão de cotas de fundos de investimento falidos, não venderia imóveis cujas matrículas são impugnadas em juízo, não desmontaria coletivos municipais para vender suas autopeças, não monetizaria o aparelho de iluminação pública.
Tudo isso pode e deve ser marcado a valor zero, pois esses muitos esqueletos que a gente ouve falar que constam nos aconchegantes balanços da Previdência são de realização impossível, e, portanto, o lançamento à esquerda nas partidas dobradas não passa de uma débil ficção contábil desprovida de qualquer supedâneo técnico.
Talvez isso tudo passe lá em Passárgada, pois somos amigos do Rei e o Tribunal de Contas não chega, de forma que tudo quanto elucubre nossa louca imaginação, por mágica, assim será. Só penso que na aceitação desse estado alegórico e idealizado de possibilidades, o cálculo atuarial acaba por se tornar um ocioso e desnecessário mise-en-scène. Bastaria uma simples lei com um simples artigo, anunciando um simples fato “o déficit atuarial é igual a zero” que, doravante, todos deveriam acatar, extirpado o sentido técnico que a expressão desperta alhures.
Se algum atuário ou auditor de Tribunal de Contas ler este texto, espero que tenha ficado irritado. Não exatamente com os argumentos, nem comigo pessoalmente, mas irritado naquele sentido pretendido por Luhmann.
Agradeço a João Figueiredo (ABIPEM), Guilherme Walter (Lumens Atuarial) e Gustavo Carrozzino (TCE-RS) por terem lido uma versão preliminar deste artigo, isentando-os das eventuais incorreções que ainda tenham permanecido.
Alexandre Sarquis – conselheiro-substituto do TCE-SP