Assim falou a Primeira Infância

Todos os grandes pensadores e educadores da humanidade, desde a antiguidade, falaram da minha importância para o desenvolvimento e o progresso das Nações. “Educai as crianças e não será preciso punir os homens”, vaticinou Pitágoras em 500 a.C. Mas poucos foram tão precisos e felizes como a educadora, diplomata e poetisa Chilena, Nobel de Literatura em 1945, Gabriela Mistral, quando confessou: “Somos culpados de muitos erros e faltas, porém nosso pior crime é o abandono das crianças, negando-lhes a fonte da vida. Muitas das coisas de que necessitamos podem esperar. A criança não pode. Agora é o momento em que seus ossos estão se formando, seu sangue também o está e seus sentidos estão se desenvolvendo. A ela não podemos responder ‘amanhã’. Seu nome é hoje”.

Como eu disse, minha luta vem de longe. A Organização das Nações Unidas (ONU) tem cuidado da minha agenda desde meados do século passado, primeiro com a proclamação, em 1959, da Declaração Universal dos Direitos das Crianças, pela Unicef e, mais  recentemente, com a chamada Agenda 2030, ao fixar um Objetivo do Desenvolvimento Sustentável (ODS) específico para a Educação Infantil – o ODS 4: “Garantir que todos os meninos e meninas tenham acesso a um desenvolvimento de qualidade na primeira infância”.

O Brasil, sob o aspecto da legislação, buscou inspiração nesse arcabouço normativo internacional e aprovou, ao longo das últimas décadas, um robusto ordenamento jurídico voltado à minha proteção. Destaco o emblemático artigo 227 da Constituição que, com todas as letras, afirma: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Chamo a atenção para a expressão “absoluta prioridade”. Na mesma toada seguiram o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), a LDB – Lei de Diretrizes da Educação Nacional (1996), o PNE – Plano Nacional de Educação (2014), o Marco Legal da Primeira Infância (2016) e o novo Fundeb (2019). 

Mesmo reconhecendo os importantes avanços legislativos e os bons exemplos de ações dos governantes para o meu desenvolvimento nos últimos tempos, o fato é que a realidade ainda é dura e desafiadora para mim. Os indicadores que me dizem respeito – acesso à escola e evasão, transporte e infraestrutura escolar, mortalidade infantil, desnutrição, vacinação, desigualdade, violência doméstica – ainda estão muito longe do ideal. Exemplo: passados dez anos da aprovação do PNE, a sua Meta 1, que pretendia universalizar, até 2016, a educação infantil na pré-escola para as crianças de 4 a 5 anos de idade e ampliar a oferta de creches de forma a atender, no mínimo, 50% das crianças de até 3 anos até o final da sua vigência, ainda não foi cumprida.

Em meio a esses dissabores, devo dizer que a minha esperança (realista) renovou-se, recentemente, a partir de um conjunto de ações em minha defesa no âmbito dos Tribunais de Contas do Brasil (TCs). Neste contexto em que foi aprovada a Lei nº 14.617/23, estabelecendo agosto como o mês da “Primeira Infância”, vejo os TCs e suas entidades representativas, a exemplo da Atricon (Associação dos seus membros) e do IRB (Instituto Rui Barbosa), envidando esforços para me fortalecer. As iniciativas do TCs nessa direção incluem tanto o  controle da conformidade e da eficiência das políticas públicas que me protegem, quanto o exercício de uma atuação dialógica e construtiva, pactuada com os gestores públicos,  estendendo-se à Unicef e às entidades da sociedade civil ligadas à educação. Uma estratégia que vem mirando com lupa, nos quatro cantos deste imenso Brasil, as políticas públicas de alfabetização e da busca ativa de alunos, a qualidade dos serviços de transporte, as obras inacabadas e as condições de infraestrutura das escolas. Esforços que abrangem, ainda, a conscientização de governantes e parlamentares para a necessidade de priorizar recursos, para mim, nos orçamentos públicos (ver Nota Recomendatória Conjunta 01/23: www.atricon.org.br).

Creiam, não haverá progresso e redução das desigualdades sociais e regionais sem priorizar a educação, sobretudo aquela que me diz respeito. Estudo da OCDE confirma que a educação pública é a base do desenvolvimento e da mobilidade social.  Os 10% mais pobres da população levariam, segundo ela, nove gerações (180 anos) para atingir a classe média, considerando as atuais condições de educação, renda, trabalho e saúde. Além disso, dentre os pobres, são as crianças os mais vulneráveis, constata o Banco Mundial.

Como diz a canção, “há que se cuidar do broto para que a vida nos dê flor e fruto”, para que assim eu me veja livre das balas “perdidas”, dos lixões e daqueles que querem me privar da escola e até dos livros. Já velhinha, quero ter saudades da aurora da minha vida. Para isso, é preciso que todos reconheçam o meu lugar no espaço público. E esse lugar é a primeira fila do orçamento público. Não esperem entrar setembro. É pra hoje e vou precisar de todo mundo!

Valdecir Pascoal – Conselheiro do TCE-PE