Atos de gestão praticados por prefeitos e controle externo

Fabrício Motta
Ismar Viana

A ligação entre elegibilidade e probidade administrativa é intuitiva, além de expressamente reconhecida em nossa Constituição: nos termos do artigo 14, §9º, “lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”. Essa relação acabou por colocar em destaque a atuação dos Tribunais de Contas, instituições de Estado responsáveis pelo controle externo da gestão pública.

Os reflexos da atuação dos Tribunais de Contas na esfera eleitoral, regulados pela Lei Complementar nº 64/1990, têm sido objeto de frequentes equívocos e incompreensões, levando o Supremo Tribunal Federal a ser constantemente instado a estabelecer parâmetros e limites para essa interação entre os referidos sistemas – eleitoral e controle – dada a autonomia e a independência entre eles. Este artigo pretende contribuir para uma adequada compreensão do tema, fundamentalmente por meio da análise das principais decisões do STF, especialmente aquelas que fixaram teses, em sede de repercussão geral (Temas 157, 835, 1.287 e 1.304).

A análise ganha atualidade diante do recente julgamento da ADPF 982, finalizado no último dia 21/2/2025, que superou a questão da definitividade do julgamento das contas de gestão pelos Tribunais de Contas e os respectivos efeitos. Até então, alguns entendiam que o julgamento das contas de gestão pelos Tribunais de Contas não era dotado de definitividade e que dependeria de análise pelo Poder Legislativo para produzir efeitos jurídicos, inclusive quanto à aplicação de multa e a imputação de débito.

Sem pretensão de esgotar todas as decisões do STF sobre o tema, importa iniciar a análise a partir do julgamento do RE 132.747, em 17/6/1992, de relatoria do ministro Marco Aurélio. Na ocasião, por maioria, o Supremo decidiu que, em se tratando de prefeito, o julgamento das contas pelo Poder Legislativo seria condição para enquadramento na hipótese de inelegibilidade prevista no artigo 1º, inciso I, alínea “g”, da LC 64/1990. A decisão do STF abrangeria, assim, não só as chamadas contas de governo (artigo 71, I, da CRFB/88), mas também as contas do prefeito que agisse como ordenador de despesa (artigo 71, II, da CRFB/88), comumente conhecidas por “contas de gestão”.

Em 2016, no julgamento dos Recursos Extraordinários 848.826 e 729.744, o STF fixou teses de repercussão geral para esclarecer a natureza e os efeitos das decisões dos Tribunais de Contas em processo de contas que tivesse prefeito como responsável, bem como a incidência normativa artigo 1º, inciso I, alínea “g”, da Lei Complementar 64/1990.

No RE 848.826 (Tema 835), foi fixada a seguinte tese: “para os fins do artigo 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar 64/1990, a apreciação das contas de prefeito, tanto as de governo quanto as de gestão, será exercida pelas Câmaras Municipais, com auxílio dos Tribunais de Contas competentes, cujo parecer prévio somente deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos vereadores”. No RE 729.744 (Tema 157), por sua vez, a tese fixada foi: “o parecer técnico elaborado pelo Tribunal de Contas tem natureza meramente opinativa, competindo exclusivamente à Câmara de Vereadores o julgamento das contas anuais do Chefe do Poder Executivo local”.

Da leitura dos Temas 835 e 157, portanto, é possível: a) quando se tratar de prefeito, o julgamento de contas a ser objeto de valoração, para fins de incidência do artigo 1º, inciso I, alínea “g” da LC nº 64, de 1990, é o julgamento realizado pela Câmara Municipal, independentemente da natureza das contas sujeitas a julgamento; b) a omissão da Câmara Municipal em julgar as contas que foram apreciadas pelo Tribunal de Contas não tem o condão de fazer com que o parecer prévio produza efeitos imediatos.

Interpretações equivocadas

Apesar da clareza das teses fixadas, surgiram decisões judiciais no sentido de considerar que prefeitos estariam imunes ao controle externo dos Tribunais de Contas, ainda que fossem ordenadores de despesa e praticassem atos de gestão.

Em outras palavras, mesmo o STF tendo se referido apenas ao julgamento para fins de enquadramento no artigo 1º, inciso I, alínea “g”, da Lei Complementar 64/1990 (que dependeria do Poder Legislativo), houve quem interpretasse que os prefeitos, ainda que praticassem atos de gestão, não poderiam ter seus atos julgados pelos Tribunais de Contas para nenhum fim, em desprezo às competências constitucionalmente outorgadas a essas instituições, inclusive de aplicar multa e imputar débitos por danos apurados. Tais interpretações equivocadas levaram o STF a se manifestar novamente, como se verá adiante.

Em meio a essa controvérsia, em 2021, a LC n. 184 inseriu o §4º-A ao artigo 1º da LC 64/1990, estabelecendo que a inelegibilidade prevista na alínea “g” do inciso I do caput não se aplica aos responsáveis que tenham tido suas contas julgadas irregulares sem imputação de débito e sancionados exclusivamente com o pagamento de multa.

Posteriormente, sobre o referido §4º-A, a partir dos Temas de repercussão geral 157, 835 e 1.287, o STF fixou o Tema 1.304 (RE 1.459.224-SP) no sentido de que a regra do mencionado dispositivo se aplica apenas aos julgamentos pelos Tribunais de Contas, ou seja, não se aplicariam aos casos de julgamentos de contas realizados pelo Poder Legislativo, por não envolverem a aplicação de multa ou imputação de débito.

Aliás, o ministro Gilmar Mendes, em seu voto, abriu tópico próprio intitulado “Do sistema de Controle Externo previsto pela Constituição” e destacou que apenas os Tribunais de Contas têm competência para julgamento de contas com imposição de multa e débito, conforme o artigo 71, II, da CRFB/88, concluindo, em razão disso:

“Assim, se a hipótese de inelegibilidade prevista no art. 1º, inciso I, alínea g, da LC 64/1990 não se aplica ‘aos responsáveis que tenham tido suas contas julgadas irregulares sem imputação de débito e sancionados exclusivamente com o pagamento de multa’, em tese seria possível chegar-se à conclusão de que chefes do Poder Executivo estariam automaticamente excluídos da incidência de tal inelegibilidade, uma vez que têm suas contas apenas aprovadas, ou não, pelo Poder Legislativo – o que não inclui, obviamente, a aplicação de multas”.

E para não deixar dúvidas dos reflexos das deliberações dos Tribunais de Contas, em contas de prefeito, seja por meio de apreciação (artigo 71, I da CRFB/88), seja por meio de julgamentos de atos de gestão (artigo 71, II da CRFB/88), o relator reiterou o entendimento do STF no sentido de que esses julgamentos não se prestam a produzir, de forma isolada, direta e imediata, o enquadramento no artigo 1º, inciso I, alíndea “g” da LC nº 64, de 1990, o que não impede, contudo, que os fatos apurados por meio de processos de controle externo deem ensejo à responsabilização nas esferas cível, criminal ou administrativa.

Ou seja, quando não se encontra em discussão a incidência do aludido dispositivo, a produção de efeitos das decisões dos Tribunais de Contas que tenham prefeitos como responsável independe de julgamento, pelo Poder Legislativo, conforme, aliás, esclareceu o STF, no julgamento do ARE 1.436.197, que deu ensejo ao Tema 1.287, fixando a tese no sentido de que “no âmbito da tomada de contas especial, é possível a condenação administrativa de Chefes dos Poderes Executivos municipais, estaduais e distrital pelos Tribunais de Contas, quando identificada a responsabilidade pessoal em face de irregularidades no cumprimento de convênios interfederativos de repasse de verbas, sem necessidade de posterior julgamento ou aprovação do ato pelo respectivo Poder Legislativo”.

Nesse caso, muito embora não esteja a discussão restrita a julgamento de contas anual de gestão, mas a ato de gestão praticado por prefeito e sujeito a tomada de contas especial, o fato é que o STF reafirma a jurisprudência no sentido da possibilidade de referido agente público ser julgado pelos Tribunais de Contas sem a necessária intervenção do Poder Legislativo.

Persistindo as incompreensões em torno do sentido e alcance do entendimento assentado pelo STF, nos Temas 157, 835, 1.304 e 1.287, a corte, mais uma vez, foi instada a se manifestar, o que fez no bojo da ADPF 982, com vistas a fixar entendimento quanto à competência dos Tribunais de Contas para o julgamento de Prefeitos que agem como ordenadores de despesa, com possíveis imputações de débito ou aplicação de multa.

Acertadamente, a Corte se valeu do sentido amplo da expressão ordenação de despesa conferido pelo parágrafo único no artigo 80 do Decreto-Lei n. 200, de 25 de fevereiro de 1967, cuja rota de incidência normativa alberga, por óbvio, os prefeitos que agirem na condição de ordenadores de despesa.

Muito em embora os precedentes vinculantes anteriores tenham se limitado à rota de incidência normativa do artigo 1º, inciso, alínea “g” da LC nº 64, de 1990, e à possibilidade de condenação direta de chefes do poder executivo, em sede de tomada de contas especial, pelos Tribunais de Contas, não foram eles expressos quanto à possibilidade de essas instituições controladoras, fora do contexto da tomada de contas especial, imputarem débitos ou aplicarem multas a chefes do Poder Executivo que se encarregam de ordenar despesas, conforme, aliás, reconhecido pelo relator, em seu voto.

Agora, então, reconheceu o STF, no bojo do aludido julgamento, que “(I) Prefeitos que ordenam despesas têm o dever de prestar contas, seja por atuarem como responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração, seja na eventualidade de darem causa a perda, extravio ou outra irregularidade que resulte em prejuízo ao erário; (II) Compete aos Tribunais de Contas, nos termos do art. 71, II, da Constituição Federal de 1988, o julgamento das contas de Prefeitos que atuem na qualidade de ordenadores de despesas; (III) A competência dos Tribunais de Contas, quando atestada a irregularidade de contas de gestão prestadas por Prefeitos ordenadores de despesa, se restringe à imputação de débito e à aplicação de sanções fora da esfera eleitoral, independentemente de ratificação pelas Câmaras Municipais, preservada a competência exclusiva destas para os fins do art. 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar nº 64/1990”.

Diante disso, o cenário jurisprudencial atual terminou por assentar entendimento no sentido de que os Tribunais de Contas são dotados de competência para julgar atos de gestão de prefeitos, sem que para tanto dependam do Poder Legislativo para que a decisão produza efeitos jurídicos, o que pode ocorrer, inclusive, em julgamento de processos de contas de gestão (ADPF 982), com possibilidade de imputação de débito e aplicação de multa. No tange à incidência do artigo 1º, inciso I, alínea “g” da LC nº 64/90, remanesce a dependência do Poder Legislativo, sejam processos de “contas de governo” ou “contas de gestão” (Tema 835 e ADPF 982), quando o prefeito figurar como responsável. Contudo, há possibilidade de incidência direta do aludido dispositivo, independentemente de quem figure como responsável, em se tratando de atos de gestão apurados e julgados por meio das demais espécies de processos de controle externo (Temas 835, 1.287 e 1.304).

Fabrício Motta é conselheiro do TCM-GO e diretor de Relações Jurídico-Institucionais da Atricon

Ismar Viana é auditor de Controle Externo (TCE-SE), mestre e doutorando em Direito Administrativo (PUC-SP)

Artigo originalmente publicado no portal Consultor Jurídico em 06.03.2025