Fonte: Zero Hora
Má gestão resulta em toneladas de medicamentos com data de validade vencida
Cerca de 60 toneladas de remédios pelo governo do Estado para atender a população desde 2005 não têm condições próprias para consumo
por Cleidi Pereira
Todos os meses, caixas de papelão recheadas com medicamentos vencidos formam uma pequena muralha no almoxarifado central da Secretaria Estadual da Saúde (SES), em Porto Alegre.
Colírios, sedativos, insulinas, cremes ginecológicos, suplementos alimentares, antivirais do tipo Tamiflu e até remédios para tratamento de câncer eram alguns dos itens que, no início de abril, estavam nas pilhas identificadas com placas de “prazo expirado” e “quarentena”, ou seja, prestes a vencer.
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Entre 2005 e 2013, quase 60 mil quilos de remédios perderam a validade nos estoques do Estado. Comprados para atender a população carente, acabaram em aterros da Região Metropolitana.
Apenas o volume descartado nos últimos três anos significou prejuízo, em valores corrigidos, de R$ 13,2 milhões, conforme dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação, junto à SES e ao Tribunal de Contas do Estado (TCE). O montante, que corresponde a 6% do total gasto pelo Estado na aquisição direta de medicamentos no ano passado, seria suficiente para comprar 88 ambulâncias.
Relatórios de auditorias do TCE, analisando os exercícios de 2010 e 2011, apontaram deficiências na gestão dos medicamentos como causa do desperdício. “Essa falta de controle tem início nas requisições de compra, envolvendo o gerenciamento de previsões, passando pela falta de acompanhamento e análise do estoque existente, até a inércia quanto à adoção de medidas que viessem a resguardar o dinheiro público, quer por meio da devolução, troca ou repasse, fazendo com que a despesa alcance seu objetivo, qual seja, o fornecimento de medicamentos, salvando vidas”, diz um trecho do relatório.
Auditores querem achar responsáveis
Os auditores sugeriram que fosse instaurada uma Tomada de Contas Especial, na tentativa de apurar o montante desperdiçado e apontar os responsáveis. Mas a medida depende do andamento de inspeção extraordinária na SES, já que os processos tramitam em conjunto.
– É difícil considerar que não haveria descarte nenhum. A questão é a quantidade descartada. Com certeza, como o relatório apurou, poderia haver melhoria. Uma quebra sempre vai existir, mas o ideal seria perto de zero – avalia o supervisor de Auditoria e Instrução de Contas Estaduais do TCE, Clayton Paim Moreira.
No almoxarifado, os remédios adquiridos pelo Estado ou repassados pelo Ministério da Saúde são divididos por setores e armazenados em gigantescas prateleiras. Por poucos metros, as pilhas não encostam no telhado metálico, que em dias quentes torna mais difícil a jornada dos 57 trabalhadores do local.
Sobra de um lado, mas falta do outro
A aposentada Virgínia Pereira de Campos, 53 anos, carrega na bolsa receitas datadas de outubro de 2013 e janeiro de 2014. Nos últimos meses, ela exercitou a paciência – uma virtude adquirida diante das limitações impostas pelo diabetes – ao peregrinar por postos de saúde em busca de dois medicamentos, a sinvastatina e a insulina regular.
Apesar da dificuldade de locomoção, Virgínia, que reside na zona sul da Capital, já esteve em três unidades de saúde desde o início do ano para obter a sinvastatina. Todas as vezes, a resposta dos atendentes era a de que o produto estava em falta.
No caso da insulina regular, no decorrer de um ano, a aposentada conta ter sido informada na unidade que frequenta, a Moradas da Hípica, de que a medicação deveria ser retirada em outro posto. Na tentativa de buscar o remédio em outro local, era mandada de volta para a unidade do seu bairro.
– Não posso ficar caminhando. Se caminho um pouco, logo estou morrendo de dor nos pés – diz.
Secretaria reconhece escassez de produto
Quando ZH conversou com a aposentada, em meados de abril, ela havia decidido que iria comprar a sinvastatina, após três meses de espera pela medicação. Virgínia resolveu insistir pela última vez, atendendo a um pedido da reportagem, que a acompanhou até a Unidade Básica de Saúde Moradas da Hípica. Passados alguns minutos, ela deixou o posto com caixas de medicamentos em mãos.
– Até a insulina regular me deram – ressaltou, acreditando que a presença da reportagem tenha contribuído para o atendimento da demanda.
De acordo com a Secretaria Municipal da Saúde, houve interrupção no fornecimento da sinvastatina, entre fevereiro e abril, por conta de um contratempo ocorrido no laboratório que repassa o produto. Quanto à insulina regular, a pasta nega que tenha havido problema no repasse do medicamento.
Jogo de empurra nas explicações
A desorganização nos estoques de medicamentos no Rio Grande do Sul se reproduz nas explicações do poder público para o desperdício de produtos.
A Secretaria Estadual da Saúde (SES) responsabiliza o Ministério da Saúde por boa parte da perda de remédios, e o ministério devolve a culpa para a pasta estadual, em um jogo de empurra.
A secretaria afirma que o governo federal envia mercadoria com prazo de validade curto ou em quantidade superior ao necessário para o Rio Grande do Sul. O repasse de excedente seria uma medida estratégica, para atender a programas como DST/Aids e Saúde da Mulher.
Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde afirma que manda aos Estados o montante solicitado pelas secretarias e que a remessa é acrescida de um volume extra – também definido pelas próprias pastas estaduais – destinado à formação de um estoque preventivo.
“Cabe destacar que compete às secretarias de Saúde a organização dos estoques, manutenção de condições adequadas de armazenamento e critérios corretos de descarte dos produtos. Todos os medicamentos enviados pelo ministério respeitam os critérios de validade e de qualidade dos produtos”, diz o Ministério da Saúde, em nota enviada a ZH.
Relação entre governo e judiciário tem falhas
O descompasso no setor público igualmente aparece na relação do governo estadual com o Judiciário. Segundo a diretora da Assistência Farmacêutica do Estado, Simone Pacheco do Amaral, o descarte de produtos também ocorre porque itens obtidos pelos cidadãos por via judicial não são retirados.
Ela explica que a Justiça obriga o Estado a comprar as medicações, mas, ao mesmo tempo, determina o bloqueio e repasse de parte do valor ao beneficiado para garantir o início imediato do tratamento. Como a secretaria não é avisada, adquire o fármaco e acaba ficando com excedente em estoque. Como são medicações específicas, o Estado tem dificuldades de fazer o remanejo.
Após os apontamentos do TCE, foi implantado inventário eletrônico mensal e criado um grupo para monitorar os prazos de validade e realizar o remanejo de estoques entre cidades. A secretaria também passou a não aceitar o recebimento de lotes de medicamentos com mais de 20% do prazo de validade transcorrido.
Os resultados dessas ações demoram para aparecer. Em 2013, o volume de produtos vencidos cresceu 64,3% em relação a 2012. Simone ressalta que o almoxarifado central recebeu R$ 608 milhões em medicações no ano passado, contra um total R$ 439 milhões em 2012.
Ela também explica que houve incremento de 16% na demanda judicial em 2013 – chegando a 60,7 mil usuários com tratamentos pagos pelo Estado após uma decisão da Justiça – e que 22% do valor em medicamentos vencidos no ano passado são referentes ao oseltamivir (tamiflu).
– O descarte sempre vai acontecer. O que se tem de fazer é estimular o uso racional. É uma questão de bom senso – diz Simone.
Sobre as condições precárias do almoxarifado – apontadas pelo TCE –, a SES informa que foram efetuadas melhorias na estrutura e que um projeto de climatização está em andamento.
AS EXPLICAÇÕES DA SECRETARIA
– Medicamentos são enviados pelo Ministério da Saúde com “prazo de validade curto”, o que aumenta “significativamente” o percentual de perda. Também são repassados itens em excesso, por uma questão estratégica, para atender programas como DST/Aids.
– Há necessidade de adquirir medicamentos para enfrentar possíveis epidemias, como o caso do H1N1.
– Usuários obtêm acesso ao tratamento por via judicial, mas acabam não retirando parte dos remédios porque a Justiça também determina o repasse direto de recursos aos beneficiados para a compra dos produtos.
– Havia déficit de farmacêuticos no almoxarifado central. Os profissionais passaram de três para 10 nos últimos quatro anos.
– A SES reconhece que havia “gestão deficitária” do almoxarifado central, que estava sob responsabilidade da Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde (Fepps) até o ano passado. Agora, o setor está sob controle da pasta.
Acesse a reportagem completa e o vídeo em: http://alturl.com/7opam