“Vivemos uma nova era, a da Cidadania em Trânsito, conceito que na minha obra, “A Era do Direito Positivo” designei como sendo “a capacidade do cidadão de participar politicamente, ser consultado, emitir opiniões e influenciar decisões a partir de qualquer lugar do mundo, graças às tecnologias digitais.”
João Antonio
Vivemos uma revolução silenciosa, mas profunda. As tecnologias digitais vêm transformando radicalmente a maneira como interagimos, nos informamos e participamos da vida pública. As chamadas Big Techs ultrapassam as autonomias dos Estados nacionais, promovendo uma comunicação instantânea sem fronteiras, uma economia globalizada e novas formas de moeda — sem lastro e sem limites territoriais. Nesse contexto de rápidas mudanças, emerge um novo conceito que eu denomino de: Cidadania em Trânsito. Trata-se de uma reconfiguração do papel do cidadão, agora mediado por redes digitais, sem ancoragem territorial fixa, mas com alcance e presença política globais.
Origens da cidadania e o nascimento da democracia
A democracia nasceu na Grécia Antiga, com o objetivo de ser mais do que a expressão da vontade popular: era o próprio povo exercendo o poder. A palavra “democracia” deriva dos termos gregos demos (povo) e kratos (governo), ou seja, “governo do povo”. Em Atenas, os cidadãos se reuniam fisicamente nas praças públicas para deliberar sobre os destinos da cidade, inaugurando o que chamamos de democracia direta e, com ela, o conceito de cidadania.
Cidadania, nesse sentido clássico, é o conjunto de direitos e deveres que uma pessoa possui como membro de uma sociedade. Implica participar da vida política, social e cultural do país, exercendo direitos civis, políticos e sociais, e cumprindo suas responsabilidades.
A cidadania nos Estados modernos
Com o crescimento das populações e a complexidade das sociedades contemporâneas, tornou-se inviável reunir todos os cidadãos em praça pública. Assim, surge a democracia representativa, ou democracia indireta, onde o povo elege representantes para exercer o poder em seu nome. Essa forma de organização política consolidou o modelo de cidadania tradicional, vinculado ao território, à nacionalidade, aos documentos oficiais e às instituições centralizadas do Estado-nação.
Na cidadania tradicional, a participação política exige presença física ou, no mínimo, conexão com o espaço institucionalizado da política: eleições periódicas, assembleias, partidos, instituições públicas. O cidadão é um agente fixo, territorializado, com uma relação vertical com o poder.
O surgimento da Cidadania em Trânsito
Hoje, contudo, não é mais necessário reunir-se fisicamente para opinar sobre os rumos da sociedade. Vivemos uma nova era, a da Cidadania em Trânsito, conceito que na minha obra, “A Era do Direito Positivo” designei como sendo “a capacidade do cidadão de participar politicamente, ser consultado, emitir opiniões e influenciar decisões a partir de qualquer lugar do mundo, graças às tecnologias digitais.”
Essa nova forma de cidadania é resultado direto da ubiquidade e da velocidade da comunicação na era da revolução tecnológica. A conectividade em rede rompe as barreiras geográficas e temporais, permitindo que o indivíduo esteja em constante deslocamento — físico ou virtual — sem perder sua capacidade de ação política, social e cultural. O cidadão está em trânsito, mas não está ausente; ao contrário, está mais presente, mais ativo, mais informado e engajado, interagindo em tempo real com instituições, causas e comunidades locais e globais.
A Cidadania em Trânsito não depende mais da praça física ou do parlamento tradicional: suas arenas de atuação são as redes sociais, as plataformas digitais, os fóruns online, os espaços híbridos e fluidos onde se constroem consensos, se travam disputas e se formam novas subjetividades políticas.

Implicações para a democracia
A transição da cidadania tradicional para a Cidadania em Trânsito traz profundas implicações para a democracia. Por um lado, há uma ampliação real das possibilidades de participação. Mais pessoas podem se engajar, se informar, fiscalizar o poder público, formar opinião e mobilizar apoio — tudo em tempo real e com alcance global.
Por outro lado, essa nova cidadania desafia os marcos institucionais tradicionais. A representação política se vê tensionada pela emergência de vozes descentralizadas. As instituições perdem monopólio sobre a mediação política, e as grandes plataformas tecnológicas passam a ocupar esse lugar, muitas vezes sem controle democrático, com algoritmos opacos e interesses corporativos.
Conclusão: os desafios da Cidadania em Trânsito
A Cidadania em Trânsito é, por natureza, um fenômeno ambivalente. De um lado, representa uma ampliação promissora da democracia, permitindo maior inclusão, agilidade e capilaridade na participação política. De outro, revela riscos estruturais: fragmentação do debate público, vigilância em larga escala, manipulação algorítmica e a crescente concentração de poder nas mãos de grandes corporações tecnológicas.
Dentre os principais desafios contemporâneos, destacam-se:
Garantir a legitimidade dos processos digitais: Como assegurar que a participação online seja segura, auditável, plural e representativa, livre de fraudes, bolhas informacionais e interferências externas?
Proteger a autonomia dos Estados democráticos: Como impedir que decisões de interesse público sejam submetidas à lógica das plataformas privadas, que não possuem accountability pública nem compromisso com valores republicanos?
Regular as Big Techs: Como estabelecer um equilíbrio saudável entre liberdade de expressão, responsabilidade das plataformas e o combate eficaz à desinformação e ao discurso de ódio?
Reformular a educação cívica: Como preparar cidadãos capazes de atuar de forma crítica, ética e colaborativa em um ambiente digital dominado por fluxos massivos de informação e influência?
Redesenhar as instituições políticas: Como adaptar os mecanismos tradicionais de representação e deliberação às novas formas de engajamento em rede, evitando a erosão do espaço público como arena comum?
Além dessas questões estruturais, há um dilema de fundo que exige atenção: como equilibrar a relação entre o indivíduo e a coletividade na era da hiperconectividade? A Cidadania em Trânsito tende a reforçar a experiência individualizada da política — marcada por posicionamentos personalizados, consumo seletivo de informação e microengajamentos episódicos — o que pode enfraquecer o sentido de pertencimento coletivo e desarticular projetos comuns. Nesse cenário, a política corre o risco de se tornar uma experiência solitária, fragmentada e moldada por impulsos algorítmicos, em vez de um processo construído em diálogo, negociação e solidariedade.
Assim, o dilema entre poder e coletividade reaparece sob nova forma: como criar instituições e práticas que, mesmo mediadas digitalmente, preservem o valor da convivência democrática, do bem comum e da ação coletiva? Como evitar que a conectividade gere isolamento político e que a autonomia individual degenere em desagregação social?
Diante desses impasses, é urgente repensar os fundamentos da cidadania e da democracia à luz das transformações tecnológicas do nosso tempo. O digital já não é apenas uma ferramenta: é o novo território da política. E, como tal, exige a construção de uma nova arquitetura institucional, ética e normativa — capaz de garantir que a Cidadania em Trânsito se consolide como um avanço efetivo da democracia e não como uma forma sutil de dominação.
Se não forem enfrentados esses desafios, corremos o risco de abrir as portas para novas formas de autoritarismo — regimes tecnocráticos ou autocráticos travestidos de democracia digital, onde o controle da circulação de ideias se converte em dirigismo ideológico, e a liberdade é substituída por uma simulação algorítmica de participação.
Mais do que nunca, é tempo de decidir: se o mundo digital será um espaço de emancipação cidadã — ou apenas uma nova moldura para o velho jogo do poder.
João Antônio é conselheiro do TCM-SP e vice-presidente da Atricon