Contas, ética, solidariedade e alteridade

Gilberto Pinto Monteiro Diniz

A criação do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais ocorreu na Constituição Mineira de 1935, fruto de Assembleia Constituinte eleita pelo povo e que legou aos mineiros a primeira Constituição de viés social. A comemoração dos 89 anos do Tribunal de Contas mineiro, em 2024, e que marca o início das celebrações dos 90 anos, a serem completados em 2025, constitui momento oportuno para trazer à reflexão temas atinentes ao Controle Externo, os quais se inter-relacionam: contas, ética, solidariedade e alteridade, como será demonstrado neste breve trecho, são consectários lógicos do Estado de Direito de cariz democrático, social e fiscal, consolidado na Constituição da República de 1988 e na Constituição do Estado de Minas Gerais de 1989.

A Constituição da República de 1988, além dos direitos fundamentais classificados como de liberdade, sociais, econômicos, culturais, assegurou os ditos direitos de fraternidade ou direitos coletivos e transindividuais, visando proteger o hipossuficiente do poderio econômico do mercado e, assim, garantir igualdade material ao homem, e não somente igualdade formal. A declaração e a garantia de todo esse elenco de direitos redundaram na imposição de obrigações positivas ao Estado, a serem adimplidas mediante a formulação de políticas e ações estatais, cuja execução é custeada com recursos financeiros advindos da arrecadação de tributos. Daí por que o Estado moderno, salvo raras exceções, é constituído sob a forma de Estado fiscal ou de Estado tributário.

Esse contexto permite inferir que a solidariedade é elemento essencial para amalgamar a tessitura social do Estado moderno, de modo especial a solidariedade fiscal, que corresponde à assistência recíproca entre os membros de uma sociedade organizada politicamente sob a forma de Estado fiscal, consubstanciada na contribuição que é feita ao ente estatal mediante o pagamento de impostos, cobrados segundo a capacidade contributiva ou econômica de cada contribuinte.

A ideia de contas públicas, nesse diapasão, não deve ser concebida apenas sob a ótica da conformação contábil, orçamentária, financeira, patrimonial e operacional, e sim de forma holística, como manancial de dados e informações que possibilita a aferição e avaliação de resultados e de políticas.

Isso porque as contas públicas representam, na esteira da filosofia hegeliana, um suprassumir de aspectos inerentes à governança e à gestão dos bens e recursos públicos, na medida em que nelas são demonstrados os programas, projetos e ações implementados por governos ou instituições públicas para executar as políticas idealizadas para concretizar direitos fundamentais plasmados na Constituição, nas diversas áreas da atuação estatal, como saúde, educação, segurança, meio ambiente.

Com efeito, universalizar e concretizar os direitos fundamentais dos indivíduos declarados nas Constituições democráticas das nações civilizadas e na Carta Universal de Direitos Humanos de 1948 é realizar o bem comum, dimensão ética ou valor máximo do Estado Democrático de Direito, nas palavras do jusfilósofo mineiro Joaquim Carlos Salgado.

Outro elemento também indispensável para amalgamar a tessitura social do Estado moderno, pelo fato de ser inerente às relações sociais ou aos lugares de encontro com o outro, é a alteridade. A alteridade é o outro nome da categoria hegeliana do reconhecimento, conceito magistralmente traduzido para o mundo da língua portuguesa pelo magistério do Padre Henrique Cláudio de Lima Vaz, de saudosa memória. Padre Vaz ainda não foi com justiça histórica situado devidamente no panteão filosófico, embora seja dos mais expressivos pensadores brasileiros, considerado uma lenda ainda em vida, em função de sua trajetória de estudos, com destacada e vasta produção acadêmica. Sacerdote jesuíta de grande erudição, detinha vasta e sólida cultura científica e humanística, assim como sólido e profundo conhecimento filosófico acerca do pensamento ocidental. Além disso, mantinha vivo interesse pelo pensamento moderno e seus representantes, assim nos legando obra consistente, centrada na importância do ser humano e de suas relações com a alteridade e a transcendência. Hegelianamente, Padre Vaz identificou, na dialética do Senhor e do Escravo, a parábola fundante do ocidente, cuja trajetória é o embate permanente entre poder e liberdade.

Para o filósofo, a “identidade da comunidade ética” é apresentada como estatuto ontológico que une os indivíduos em uma relação de reciprocidade, consenso e reconhecimento, tornando-se, portanto, cada vez mais evidente a necessidade de entendermos o conhecimento de outro ser humano como sujeito, e não como objeto, dada a grave ameaça de redução da razão iluminista a uma degradada razão instrumental, que coisifica o outro e nos conduz a barbárie da indiferença. Entre os sujeitos da comunidade ética haverá reciprocidade consciente e livre: sou livre na medida em que o outro também o é. Esse espírito, persuadido pela ideia de liberdade, constitui valor inquebrantável e um destino para nós mineiros, desde os inconfidentes, que ousaram sonhar um Brasil para os brasileiros.

Tal vocação, transcendental, a qual não se enverga ao localismo, é marca daqueles que acreditam na brasilidade, que buscam inspiração em um poeta tão caro a nós mineiros. Para João Guimarães Rosa: “O correr da vida … [diz ele] embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

Nessa esteira de raciocínio, a atividade pública é que possibilita dar concretude aos direitos fundamentais e, assim, transformar a vida das pessoas, pois é o elo fundamental no atendimento pleno dos serviços essenciais prestados pelo Estado à população; é o ato de construir, persistente e diuturnamente, uma sociedade melhor; é atuação que requer conhecimento e coragem! Sim, devemos distinguir tal trabalho, ainda mais em um tempo de criminalização não somente da política, mas de toda a vida pública, gerado por um claro sentimento de estatofobia. Assim, o Estado ético, verdadeiro garantidor da concretização dos direitos fundamentais, é a única garantia possível em face de emergente algorocracia, de claro viés totalitário, a qual se alimenta de um individualismo atomizado, que caracteriza o sistema hegeliano de necessidades e carências ? necessidades artificiais e hedonistas que confrontam e minam a soberania estatal.

Hoje, com 89 anos, instado a atender, de forma tempestiva, os interesses do cidadão mineiro, nosso credor maior, que anseia por serviços públicos de qualidade e prestados a tempo e modo, o Tribunal de Contas mineiro se vale de recursos tecnológicos variados para a fiscalização contas públicas, além da expertise dos seus quadros técnicos, o que amplia sua capacidade e velocidade de atuação, exigências dos tempos modernos.

Por sua própria natureza, a Casa de Contas mineira é grande repositório de dados e informações confiáveis sobre a Administração Pública e os produz de modo independente, tendo como desafio o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação, para tornar tais informações tempestivamente acessíveis e compreensíveis pelos cidadãos, incluindo os formuladores de políticas públicas. O uso de inteligência artificial já não é mais novidade no ambiente do Tribunal de Contas mineiro, tendo se tornado mecanismo relevante no planejamento e na execução das atividades de controle, com grande importância na atuação preditiva, preventiva e pedagógica.

À guisa de exemplo do uso de inteligência artificial, no âmbito da Diretoria de Fiscalização Integrada e Inteligência – Suricato da Casa de Contas mineira, cito o Robô APOLO (Analisador de Planilhas Orçamentárias de Licitações de Obras) e a Plataforma de Gestão de Trilhas, a fim de identificar possível sobrepreço nos itens que compõem as planilhas orçamentárias de editais de obras ou de serviços de engenharia; a ferramenta de auxílio ao controle externo, desenvolvida por metodologia de análise estatística inferencial de dados, para identificar indícios de sobrepreço e danos ao erário, por meio de uma calculadora em linguagem “R”; o Indicador Suricato de Infraestrutura Escolar Nacional, que, com base nos dados do Censo Escolar e com a utilização de métodos estatísticos, classifica as instituições de ensino em cinco níveis de qualidade, o que permite ao Tribunal de Contas concentrar esforços nas escolas com maiores necessidades de intervenção; o Robô SOLARIS – Seletor de Objetos em Licitações para Análise e Retificação de Irregularidades ? Metodologia ONR, que permite selecionar, de forma automática, editais de licitação com riscos de direcionamento ou para aquisições de bens de luxo, de modo a possibilitar a análise e, se for o caso, a correção de possíveis irregularidades, por meio de alertas enviados aos jurisdicionados.

À medida que o mundo se torna mais globalizado e a sociedade mais complexificada e volátil, avulta a necessidade de instituições mais modernas, ágeis e criativas, assim a mudança cultural é desafio frequente para o Estado.

O sistema de controle externo é estrutura forte e fundamental para a qualidade da democracia, porque fundado no interesse público primário e porque o seu funcionamento efetivo garante sustentação e relevância em todas as etapas do ciclo da gestão governamental. Caminhando para comemorar 90 anos de existência, o Tribunal de Contas mineiro reflete sobre o futuro, decerto com preocupação, mas sem medo! Necessário, a fim de que enfrente, de forma consistente, o avanço na avaliação qualitativa de políticas públicas e o desafio do controle estratégico de contas, incluída a auditoria de algoritmos.

Por fim, como reflexão acerca da caminhada de todos nós, para que tenhamos a esperança sempre aninhada em nossos corações, a esperança de mundo melhor, evoco as palavras de Eduardo Galeano ao citar o cineasta argentino Fernando Birri. Diz Galeano, em seu livro As palavras andantes: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que nunca deixemos de caminhar”.

Esses versos também nos remetem a outros do poeta espanhol António Machado e que nos lembram de que o caminho se faz ao caminhar. Então, por mais que caminhemos, devemos sempre seguir em frente.

Gilberto Pinto Monteiro Diniz é presidente do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCE-MG)

Artigo originalmente publicado pelo jornal Diário de Minas