Contos de Natal

A essência do espírito natalino é recordar o nascimento de Jesus de Nazaré, há 2022 anos. Amor, compaixão, doação, humildade, simplicidade, solidariedade, fraternidade, perdão, sacrifício, mansidão, coragem para seguir ou para recomeçar são alguns dos atributos que marcaram a vida do Aniversariante e merecem a nossa reflexão. E quando falo “nossa”, refiro-me aos Cristãos praticantes ou àqueles que apenas trazemos a cultura Cristã impregnada em nossas histórias de vida, aos que cultuam outros credos, baseados no amor, e até mesmo aos não religiosos, ateus e agnósticos comprometidos com os valores éticos e humanistas.

A simbologia da época – que, neste ano, chega em meio a desencontros, tensões, violência, intolerâncias, revelações, irracionalidades, desigualdades, pobreza, esperanças contidas –, leva-me a recomendar a leitura reflexiva de duas verdadeiras antologias literárias que têm o condão de reforçar a nossa ética civilizatória de bem conviver ou de resgatar as humanidades perdidas.

Em “O Conto de Natal” (A Christmas Carol, 1843), um dos textos mais adaptados para cinema e teatro no mundo, o romancista inglês Charles Dickens conta a história de Ebenezer Scrooge, homem ganancioso, avarento, ranzinza, que vivia para o trabalho e para acumular riquezas. Impiedoso com os empregados, detestava o Natal e nunca aceitava o convite do seu sobrinho para a celebração em família. Eis que numa noite lhe aparecem, em sonho, três espíritos. Primeiro, o “Espírito de Natal do Passado”, que o faz voltar aos natais de sua infância e juventude. Memórias do amor de sua irmã, quando ele estava no internato; da bondade de seu primeiro chefe; do preço da escolha entre um amor e o dinheiro.

Em seguida, surge o “Espírito de Natal do Presente”, que o transporta para a casa de seu empregado, Bob Cratchit. Ali, ele pode testemunhar a felicidade no rosto daquela gente humilde e honesta. Apesar de pobre, a família estava reunida e feliz. Ao final, esse espírito lhe disse para ter cuidado com duas coisas terríveis: a Ignorância e a Miséria. Por fim, chega o “Espírito de Natal do Futuro”, que, levando-o a um cemitério, aponta seu nome gravado em uma lápide abandonada. Naquele futuro, ele havia morrido solitário e ninguém o tinha chorado. Na manhã seguinte, Scrooge acordou com o sol brilhando e o dobrar dos sinos anunciando o Natal. Ele já era outro homem, celebrando em plenitude o sentimento natalino, a caridade, a empatia, a família. Moral do conto: a cada manhã, temos a chance de renascer e melhorar como humanos.

Poucos sabem o subtítulo do épico “Morte e Vida Severina” (1955), de João Cabral de Melo Neto: “Um Auto de Natal Pernambucano”. A saga do retirante Severino, em sua caminhadura do seco sertão ao litoral dos manguezais do Capibaribe, é marcada pela miséria, violência e pelas mortes. Sofrido, amargurado e desiludido, resta-lhe o voo definitivo e “libertador” de uma das pontes do “Cão sem Plumas”. Eis que surge José, um mestre carpina, morador de um dos mocambos entre o cais e o rio. Ao anunciar a boa nova do nascimento de uma criança, José salva Severino e faz uma das mais belas odes literárias à vida:

— Severino, retirante, deixe agora que lhe diga:

eu não sei bem a resposta

da pergunta que fazia,

se não vale mais saltar

fora da ponte e da vida;

nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga

é difícil defender,

só com palavras, a vida, ainda mais quando ela é esta que vê, Severina

mas se responder não pude

à pergunta que fazia,

ela, a vida, a respondeu com sua presença viva.

E não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio,

que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se

fabrica, vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida; mesmo quando

é assim pequena a explosão, como a ocorrida; como a de há pouco, franzina;

mesmo quando é a explosão de uma vida Severina.

A criança de José, qual aconteceu com o Menino Jesus e os Reis Magos, recebe a visita de pessoas simples das redondezas, que lhes trazem presentes, como caranguejo, leite, papel de jornal para lhe servir de cobertor, água de bica de Olinda, canário da terra, bolacha d’água de Paudalho, bonecos de barro de Tracunhaém, abacaxi de Goiana, rolete de cana, ostras do cais da Aurora, tamarindos da Jaqueira, jacas da Tamarineira, mangabas do Cajueiro, cajus da Mangabeira e mangas do Espinheiro e dos Aflitos. Duas ciganas vaticinam o futuro da criança severina – sujo de lama, vai ser pescador no mangue ou, coisa melhor, sujo de graxa, vai liçar no chão de uma fábrica.

Numa licença poética, imagino que, além do amor, um presente de Natal poderia e pode ser sinônimo de abolição para tantas vidas severinas que teimam em nos rodear: educação e livros, como o premiado “A Educação pela Pedra” (1966), do mesmo poeta. Pedra-Professora construtora de sonhos não severinos e de castelos de dignidade.

Feliz Natal e um Ano Novo de saúde, paz, transformação e esperança!

Valdecir Pascoal – Conselheiro do TCE-PE