Giges, Gestão e Controle

A recessão da democracia vem acompanhada de críticas desconstrutivas às instituições que lhe dão lastro, mormente ao Judiciário e aos demais órgãos de controle da administração pública: Tribunais de Contas, Ministérios Públicos, Controles Internos e Polícias.
Imagine, então, um mundo sem controles. Mais: um cenário em que os gestores públicos fossem, num passe de mágica, blindados de responsabilidades; em que eles passassem a usar uma espécie de “Anel de Giges”, garantindo-lhes o anonimato e a impossibilidade de verem configuradas quaisquer correlações entre os seus atos e as irregularidades, ineficiências ou práticas de corrupção.

Entre parênteses: a fábula do “Anel de Giges” está no livro “A República”, de Platão. Nela, o pastor Giges encontra um anel que lhe permite ficar invisível e passa a cometer crimes na busca de glória e poder. A moral do diálogo metafórico travado entre Sócrates e Glauco, irmão de Platão, é saber se todos que usassem aquele anel agiriam como Giges. Glauco acha que sim; Sócrates defende que o homem justo não mudaria a postura pelo uso do anel. Esse debate ético, filosófico e religioso sobre a condição humana perdura até hoje.


O fato é que nesse mundo sem controles, do gestor invisível, boa parte dos homens públicos procuraria agir da forma certa. Mas outra parcela, não. A liberdade ilimitada, o risco zero de ser controlado e a certeza da impunidade estimulariam ilegalidades e mais abusos. Para o Gestor-Giges, o breu das cavernas seria o habitat ideal. No seu dicionário, destacam-se, além do não controle, a opacidade dos orçamentos e os sigilos de atos que deveriam estar na prateleira pública. A luz do sol, de que fala Louis Brandeis, não teria vez. Democracia, transparência e controle seriam a sua criptonita.


O anel, porém, pode mudar de mãos. E se os fiscais da gestão usassem o anel, ganhando a invisibilidade? Muitos, ainda que falíveis, manteriam o propósito ético. Mas uma parcela de Controladores-Giges dobraria a meta da parcialidade, da superioridade ou da subserviência, do moralismo, do heroísmo… Quantos “Genivaldos” poderiam ser “torquemados” sem câmeras para comprovar?


Por fim, imagine que todos usassem o Anel de Giges: profissionais liberais, jornalistas, advogados, empresários, acadêmicos, cidadãos em geral… Estaríamos preparados?


Não existem anjos (James Madison). A luz do bom controle é condição civilizatória. E, no limite, ninguém escapa da voz da própria consciência.
P.S.: Recomendo a leitura do livro “O anel de Giges”, de Eduardo Giannetti.

Valdecir Pascoal – Conselheiro do TCE-PE