Valdecir Pascoal
Em duas colunas publicadas neste JC no final de 2023 – “Desafios da Comunicação: da Torre de Babel à Linguagem Simples” (20/10) e “Ainda sobre Linguagem” (26/11) –, refleti sobre os desafios da linguagem e da comunicação social das instituições públicas, notadamente dos Tribunais de Contas (TCs). Como destaquei nesses artigos, isso se acentua ainda mais no atual contexto de crise da democracia, polarização social e epidemia de desinformação, propiciada pelas mídias digitais com seus algoritmos manipuladores.
Ante a necessidade de fazer prevalecer a precisão dos fatos e de ser melhor compreendido pelo cidadão, defendemos a adoção da Linguagem Simples pelos TCs, seguindo um movimento global e as recomendações da Atricon e do CNJ. Nessa toada, o TCE-PE instituiu um projeto estratégico voltado à difusão da Linguagem Simples, envolvendo toda a Casa, já que tudo o que temos feito pode ser melhorado do ponto de vista da linguagem — desde despachos, documentos de gestão, até relatórios, pareceres, decisões e divulgação da nossa comunicação social. Uma das primeiras medidas alcançou a área de comunicação do Tribunal, com a reformulação da página da internet, a divulgação de decisões em linguagem mais clara, concisa, direta e objetiva e, ainda, a criação de um espaço na página destinado a combater desinformações sobre a sua atuação: “TCE Esclarece”.
Há poucos dias, o projeto deu mais um passo: um treinamento básico em Linguagem Simples, composto por uma palestra e uma oficina voltadas aos servidores, proferida pela professora Heloísa Fischer, uma das maiores referências no tema em nosso país. Destaco dois aspectos de sua fala, relacionados ao comportamento humano e que confirmam a importância desse esforço institucional e cidadão: a “Epidemia da Desatenção” e a “Maldição do Conhecimento”.
O fenômeno da desatenção vem aumentando pelo uso irracional das redes sociais. Pelo último PNAD, 87% das pessoas usam a internet, e 99% destas preferem o celular. Pesquisas apontam que a concentração em determinado assunto ou texto não dura mais do que três minutos. Quem nunca ouviu uma mensagem de áudio em velocidade 2x? Quem nunca disse para um familiar ou colega de trabalho “Você não me falou isso”, quando a informação foi dada enquanto você estava distraído no celular? Quem ainda tem o hábito de ler um livro inteiro? Conseguimos assistir a um filme ou jogo sem o celular à mão? Aliado a isso, os indicadores de educação não são animadores quando o assunto é compreensão. Dados do PISA e da FGV dão conta de que o brasileiro, em regra, lê mal e apenas 20% dos trabalhadores possuem curso superior.
Já a “Maldição do Conhecimento”, velha conhecida da psicologia, é um viés cognitivo que ocorre quando, em face de temas de nosso domínio, presumimos que outras pessoas têm o mesmo nível de informação sobre o assunto. É a falta de empatia (inconsciente) ao não atentarmos que é preciso um esforço maior quando se escreve ou se fala para um interlocutor não especialista. Concluiu a professora com a seguinte sabedoria: “Eu demoro escrevendo para você ler rápido”. Esse desafio da complexidade dos temas enfrentados é uma realidade nos TCs. O nosso dia a dia é repleto de assuntos áridos: orçamento, despesas, receitas, licitações, contratos, previdência, responsabilidade fiscal, políticas públicas, processo de controle, auditoria.
Um alerta importante. Linguagem Simples não significa linguagem simplória, reducionista, superficial, nem pode prescindir da ciência e da técnica. Tampouco se confunde com o modismo do “coachismo”, em que tudo costuma ser indevidamente simplificado e até infantilizado. O professor Lenio Streck fez uma bela reflexão sobre esse risco em artigo publicado no Conjur (vale a leitura!).
Concluo essa coluna e a série sobre os “Relatórios de Graciliano Ramos”, aproveitando esse mote da linguagem. Dissemos que a forma inovadora do então Prefeito escrever seus Relatórios, a despeito de passagens de estilo mais literário e das muitas figuras de linguagem usadas, já revelava atributos do que hoje se chama Linguagem Simples, a exemplo da concisão e da forma direta e substantiva de apresentar os fatos. Isso restou evidenciado nos trechos dos Relatórios citados e, de resto, em toda a sua consagrada obra como escritor.
Mas há uma fala de Graciliano, no seu livro “Alexandre e Outros Heróis”, que é lapidar e diz o essencial sobre a arte de escrever e, por que não?, de se comunicar: “Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa; a palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”.
Tenho dito.
Valdecir Pascoal – Presidente do TCE-PE