A INJUSTIFICÁVEL MUDANÇA DO ICMS SOBRE O E-COMMERCE
A ausência de análises empíricas nas discussões jurídicas gera grandes perdas para toda a sociedade
FELIPE GALVÃO PUCCIONI
Conselheiro do Tribunal de Contas da Cidade do Rio de Janeiro. Doutorando em Engenharia de Computação com ênfase em Inteligência Artificial (COPPE/UFRJ). Mestre em Administração Pública (EBAPE/FGV, 2016) e Pós-Graduado em Políticas Públicas (Instituto de Economia/UFRJ, 2011). Cursou Engenharia de 2001 a 2005 na UFRJ. Bacharel em Matemática Pura (UFRJ, 2008) e graduando em Direito na Escola de Direito da FGV-Rio.
O artigo visa a analisar o caso da alteração da legislação do ICMS com respeito ao e-commerce. Segundo Estados do Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Espírito Santo, estaria havendo uma desigualdade na partilha do imposto. Propuseram, então, alterações constitucionais significantes nas regras referentes ao ICMS interestadual. O problema é que toda essa mudança pretendida geraria enormes custos de adaptação tanto para a Administração Pública quanto para empresas. E o que se apresentará neste texto é que, com base em uma análise simples de dados, o argumento utilizado pelos Estados insatisfeitos não deveria prosperar.
Conforme dispunha o texto original da Constituição Federal de 1988 – CF88, a sistemática do ICMS interestadual era diferente a depender se o destinatário da operação ou prestação era contribuinte ou não do imposto. Os incisos VII e VIII do parágrafo 2º do art. 155, dispunham que:
VII – em relação às operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro estado, adotar-se-á:
- a) a alíquota interestadual, quando o destinatário for contribuinte do imposto; e
- b) a alíquota interna, quando o destinatário não for contribuinte dele.
VIII – na hipótese da alínea “a” do inciso anterior, caberá ao estado da localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual.
Isto é, se o destinatário final fosse contribuinte do ICMS, a operação ou prestação teria dois sujeitos ativos: tanto o Estado de origem, aplicando-se a alíquota interestadual, quanto o estado destinatário, aplicando-se a alíquota da diferença entre a alíquota interna do estado de localização do destinatário e a interestadual[1]. Essa diferença ficou conhecida como diferencial de alíquotas – DIFAL. Por outro lado, se a operação ou prestação fosse realizada para destinatário final não contribuinte do imposto, só haveria um sujeito ativo, o Estado de localização do remetente.
O advento do comércio eletrônico e seu crescimento vertiginoso começaram a trazer à tona uma grande discussão sobre a necessidade de mudança das regras existentes na Constituição para o ICMS interestadual. Isso porque as compras realizadas pela internet possibilitaram que grande número de operações fossem realizadas a consumidores finais não contribuintes de ICMS localizados em estados diferentes do Estado de origem do remetente. Assim, segundo estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, estaria havendo uma desigualdade na partilha do imposto.
Por causa desse aumento vertiginoso do faturamento do comércio eletrônico, os estados das regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e o Estado do Espírito Santo, passaram a se sentir prejudicados. O principal argumento era de que a maior parte dos vendedores estaria na região sul e sudeste e que haveria, assim, uma repartição desigual em desfavor das regiões retrocitadas e em favor das regiões sudeste e sul.
Assim, começou a chamada “Guerra Fiscal do e-commerce”. As unidades federadas que se sentiam prejudicadas passaram a editar legislações estaduais exigindo o recolhimento da diferença entre a alíquota interna e a interestadual na entrada das mercadorias em seus territórios, à margem da Constituição Federal. Dentre essas legislações, tem-se a Lei nº 14.237 de 2008 do Ceará; a Lei nº 9.226 de 2009 do Mato Grosso; o Decreto 12.534 de 2010 da Bahia e a Lei nº 6.041 do Piauí.
Em 2011, os estados do Acre, Alagoas, Amapá, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Roraima, Rondônia e Sergipe e o Distrito Federal firmaram o Protocolo ICMS 21/2011[3], estabelecendo que nas operações interestaduais a consumidor final, realizadas por meio não presencial, o ICMS seria devido à unidade federada de destino da mercadoria ou do bem, cabendo ao remetente da mercadoria ou bem a responsabilidade pela retenção e recolhimento em favor da unidade federada de destino, o que caracteriza a condição de substituto tributário deste. A justificativa para a alteração era a necessidade de preservar o equilíbrio horizontal na tributação fixado pela CF88 tendo vista que tinha deixado de existir por causa do grande aumento do comércio eletrônico.
Sendo assim, foi proposta a Ação Direta de Inconstitucionalidades nº 4628-DF no Supremo Tribunal Federal pela Confederação Nacional do Comércio de Bens e Turismo (CNC) questionando o referido ato normativo. Foi concedida, em fevereiro de 2014, liminar suspendendo a eficácia do Protocolo ICMS nº 21/2011, e, em setembro de 2014, a Suprema Corte, tendo o Ministro Luiz Fux como relator, enfim, julgou a sua inconstitucionalidade por unanimidade.
Bem como declarou a Corte Superior, a modificação do estabelecido na Constituição, dependeria de uma alteração por Emenda, não podendo essa opção política ser substituída por decisão judicial ou outras formas normativas de sua introdução, mesmo diante de argumentos concernentes às disparidades verificadas entre os entes federativos nessas hipóteses de venda e compra de mercadorias pela internet (LENZA, 2015)[4].
Em 2011, os estados, por meio dos parlamentares, fizeram Propostas de Emendas Constitucionais (PEC) para modificar as regras de tributação do ICMS nas operações e prestações interestaduais sobre as vendas não presenciais, transferindo o produto da arrecadação da diferença entre a alíquota interna e a interestadual para os estados de destino.
A primeira a ser proposta foi a PEC nº 56/2011, a qual dispunha que a diferença entre a alíquota interna e a interestadual de ICMS para o estado de destino se daria apenas quando a operação ocorresse no âmbito do comércio eletrônico.
Já a PEC nº 103 de 2011, retirou a necessidade da operação ou prestação se realizar por meio do comércio eletrônico, bastaria ser realizada de forma não presencial. Contudo, caberia ao Senado Federal a decisão sobre quanto do ICMS seria transferida ao estado de destino. Até que entrasse em vigor eventual Resolução do Senado, caberia ao estado de localização do destinatário setenta por cento do imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual.
Houve ainda a PEC nº 113/2011, a qual propôs alterar as regras constitucionais de forma a abranger todas as operações e prestações de serviços interestaduais que destinassem bens e serviços a consumidor final. Ou seja, sempre que um consumidor final, contribuinte ou não do ICMS, fosse o destinatário dos bens ou das prestações, caberia ao estado da localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual.
Como as Propostas de Emendas Constitucionais versavam sobre o mesmo tema, tramitaram conjuntamente. A PEC nº 56 e 113 foram acolhidas parcialmente[5] na tramitação da PEC 103 e somente esta prosseguiu.
A PEC nº 103 foi enviada à Câmara dos Deputados sob o número 197 de 2012. Anos se passaram até que a proposta fosse, enfim, votada por esta Casa. Somente em 11 de novembro de 2014 foi aprovada em primeiro turno e, em 3 de fevereiro de 2015, em segundo turno. O texto aprovado altera o § 2º do art. 155 da Constituição Federal e inclui o art. 99 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para tratar da sistemática de cobrança do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação incidente sobre as operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final, contribuinte ou não do imposto, localizado em outro estado. Além disso, houve a previsão de como seria a transição para essas novas regras, com a finalidade de impedir que os estados de origem sofram grande queda de arrecadação de forma repentina.
Após muitas disputas entre os Estados para que a tributação do ICMS sobre operações e prestações – que destinassem bens e serviços ao consumidor final não contribuinte – fosse alterada, foi aprovada, em abril de 2015, no Congresso Nacional, a Emenda Constitucional nº 87, in verbis:
Art. 1º Os incisos VII e VIII do § 2º do art. 155 da Constituição Federal passam a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 155…………………………………………………………………………
…………………………………………………………………………………………….
- 2º………………………………………………………………………………..
…………………………………………………………………………………………….
VII – nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final, contribuinte ou não do imposto, localizado em outro Estado, adotar-se-á a alíquota interestadual e caberá ao Estado de localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual;
- a) (revogada);
- b) (revogada);
VIII – a responsabilidade pelo recolhimento do imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual de que trata o inciso VII será atribuída:
- a) ao destinatário, quando este for contribuinte do imposto;
- b) ao remetente, quando o destinatário não for contribuinte do imposto;
…………………………………………………………………………………….”(NR)
[…]
Com o intuito de minimizar o impacto das “possíveis” perdas de arrecadação dos estados de origem, a EC nº 87/2017 incluiu o artigo 99 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT (Tabela I se guir) que prevê um período de transição, iniciando-se em 2015.
Tabela 1 – Destinação do ICMS da diferença entre alíquota interna e interestadual
Ano | Estado Origem | Estado Destino |
2015 | 80% | 20% |
2016 | 60% | 40% |
2017 | 40% | 60% |
2018 | 20% | 80% |
2019 | – | 100% |
Fonte: Constituição Federal, ADCT, art. 99.
A referida emenda à Constituição não se restringiu somente ao e-commerce e vendas não presenciais. Houve inovação acerca de todas as operações interestaduais que destinem bens e serviços a consumidores finais não contribuintes do ICMS localizados em outro estado.
O problema é que o próprio texto da EC 87/15 prevê, no artigo 3º, que as novas regras só passariam a valer em primeiro de janeiro de 2016. Contudo, se trata de regra que pode significar aumento da carga tributária para o contribuinte. Por exemplo, imagine o caso de um produto que é isento no estado de origem e não no estado de destino. Neste caso, o contribuinte, que antes não sofria a tributação do ICMS, sofrerá a incidência do imposto referente à parcela devida ao estado de destino. Dessa forma, conclui-se que os princípios da Noventena e da Anterioridade[6] devem ser cumpridos e os efeitos da emenda constitucional somente valerão em 2016.
Após a descrição dos fatos ocorridos até a chegada da EC 87/2015, é importante questionar os argumentos utilizados pelos estados que se sentiam prejudicados com o aumento do comércio eletrônico porque, segundo eles, estaria ocorrendo uma desigual partilha de ICMS em desfavor dos estados de destino das compras na internet. O gráfico a seguir apresenta o percentual do faturamento do e-commerce em cada região considerando o estado vendedor ou de origem frente ao percentual do valor comprado em cada região por meio do comércio eletrônico em 2015.
Conforme se depreende do Gráfico 3, não haveria motivo para alteração da tributação da origem para o destino, visto que o Sudeste se beneficiaria com a ação aumentando sua tributação, relativamente às outras regiões, sobre o e-commerce, enquanto o norte e nordeste perderiam. Esse caso demonstra o problema de debates que se utilizam de intuições e não de análises empíricas e quantitativas.
O que se pode observar é que, apesar da tentativa – injustificável conforme apresentado no Gráfico 3 – de equalizar a distribuição de receita dos estados, essa mudança acabou por onerar o contribuinte em termos de acompanhamento legislativo e cumprimento de obrigações acessórias. Temos como exemplo um pequeno comércio eletrônico que vende exclusivamente pela internet a consumidor final não contribuinte. Antes, só era preciso acompanhar e cumprir a legislação do próprio estado o qual estava localizado. Agora, com a mudança, esse mesmo contribuinte deve observar a legislação de 26 estados mais o distrito federal. Adicionado a isso, conforme dispõe o Convênio nº 93 de 2015, esse contribuinte deve declarar, seja operação a operação, seja mensalmente, às Unidades Federadas de destino e de origem essas transações, e estar sujeito a fiscalização de tantas unidades federadas quantas forem as transações interestaduais efetuadas.
Conclui-se que a alteração trazida pela EC 87/2015 – tão desejada pelos estados do norte, nordeste, centro-oeste e espírito santo – pode ter gerado apenas enormes custos ao Brasil visto que a alteração da tributação para o destino das operações de vendas na internet não parece favorecer as regiões mais necessitadas.
[1] A alíquota interestadual é fixada pelo Senado Federal (art. 155, § 2º, IV, CF88), in verbis “Resolução do Senado Federal, de iniciativa do Presidente da República ou de um terço dos Senadores, aprovada pela maioria absoluta de seus membros, estabelecerá as alíquotas aplicáveis às operações e prestações, interestaduais e de exportação.”
[2] http://www.ebit.com.br/webshoppers
[3] Mato Grosso do Sul, por meio do Protocolo ICMS nº30 de 2011; e Piauí, Protocolo ICMS nº43 de 2011, aderiram posteriormente.
[4] LENZA, Pedro, Direito Constitucional Esquematizado, 19ª ed., p. 508.
[5] Abrangeria somente as vendas não presenciais a consumidor final.
[7] http://www.ebit.com.br/webshoppers
[8] http://www.telesintese.com.br/icms-e-commerce-veja-quais-estados-mais-compram-e-os-que-brigam-por-r-11-bi-em-arrecadacao-ate-2019/