O painel “Tratamento dos Resíduos Sólidos em Aglomerações Urbanas: Desafios e Avanços Promovidos pela Lei 12.305/2010”, que abriu os trabalhos da tarde desta quinta-feira (23) da programação do IV Congresso Ambiental dos Tribunais de Contas (CATC), foi palco de frases marcantes sobre a governança ambiental. “O lixo é o espelho da sociedade”, “Chega de complexo de Gabriela” e “Nós temos entregas a serem feitas.”, foram algumas das mensagens deixadas durante o encontro.
A programação reuniu três grandes especialistas nacionais, sendo Ketlin Feitosa Scartezini, José Fernando Thomé Jucá e Fábio Feldmann, que, em perspectivas diferentes, apontaram o mesmo diagnóstico: o Brasil ainda não conseguiu transformar a Política Nacional de Resíduos Sólidos em resultados concretos.
Meio Ambiente Urbano
Com leveza e provocação, a diretora de Relações Institucionais da Ambipar, Ketlin Feitosa Scartezini, abriu o painel convidando o público a encarar de frente um tema que costuma ser evitado.
Falando sobre Meio Ambiente Urbano: Mudanças Climáticas, Infraestrutura e Qualidade de Vida, Ketlin apresentou um retrato alarmante: o Brasil produz cerca de 81 milhões de toneladas de resíduos por ano, com índices de reciclagem ainda ínfimos.
Mas, em vez de se deter nos números, ela levou o público a refletir sobre comportamentos. Usando a música da novela Gabriela, brincou com a ideia de que “nascemos assim, crescemos assim e seremos sempre assim”, um padrão que precisa ser rompido.
“Chega de complexo de Gabriela. Vamos inovar, fazer diferente. O primeiro passo começa conosco.”
Ketlin destacou a importância de reconhecer os 281 mil catadores informais do Brasil como parte essencial da cadeia de reciclagem, e não como um problema.
“Eles não são o problema, são parte da solução. Mas precisam de estrutura, segurança e reconhecimento como trabalhadores essenciais.”
Entre os bons exemplos, ela citou o programa Câmbio Verde, em Curitiba, onde o cidadão entrega recicláveis e recebe cashback, créditos e até pagamento via Pix, mostrando que incentivos econômicos podem estimular novos hábitos.
A palestrante também apresentou experiências bem-sucedidas de planos municipais de ação em 180 dias, com metas de reciclagem e aumento da renda de cooperados, destacando que o sucesso depende da gestão compartilhada e do apoio dos municípios.
“O lixo é o espelho da sociedade. E é olhando para ele que percebemos o quanto precisamos mudar.”
Política Nacional de Resíduos Sólidos
O segundo palestrante, José Fernando Thomé Jucá, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e coordenador do Grupo de Resíduos Sólidos da instituição, trouxe um panorama técnico e direto sobre os desafios da Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010).
Com uma carreira marcada por projetos em biogás, bioenergia e gestão de resíduos em todo o país, Jucá foi enfático: “Como você executa alguma coisa sem nenhum planejamento? No Brasil foi tudo meio no improviso, começou assim.”
Ele lembrou que, embora a lei tenha estabelecido planos nacional, estadual e municipal, muitos deles nunca saíram do papel. Falou ainda sobre a urgência de modernizar a gestão dos resíduos, destacando o uso de satélites para medir as emissões de metano nos aterros, o que permite mapear poluição e desperdício energético.
“O setor de resíduos gera, sozinho, 91 milhões de toneladas de CO₂ equivalente por ano. Isso é energia desperdiçada.”Segundo o professor, cada brasileiro gera, em média, mais de um quilo de lixo por dia. O que revela a escala do desafio. Ele defendeu a digitalização total da cadeia de resíduos como condição para a transparência e o avanço da economia circular.
“Não dá mais para trabalhar com dados feitos à mão. É preciso que as informações estejam em plataformas abertas, para que cada município saiba o que produz e o que deixa de aproveitar.”
Falhas de gestão e governança ambiental
Fechando o painel, o advogado e ex-deputado federal Fábio Feldmann, um dos principais articuladores da Política Nacional de Resíduos Sólidos, trouxe uma fala espontânea, crítica e de muita experiência.
Em tom de desabafo ele disse “Nós somos a primeira geração que está vivendo a crise do clima.
Feldmann seguiu fazendo reflexões, entre elas, falou sobre as falhas de gestão e governança ambiental que ultrapassam décadas, e questionou: “Onde foi que erramos? Por que não estamos conseguindo fazer o que nos propusemos?”Ele recordou que o primeiro projeto de lei sobre resíduos sólidos foi apresentado ainda em 1992 e lamentou a distância entre o que foi previsto e o que foi efetivamente entregue. Para ele, os Tribunais de Contas têm papel estratégico na virada necessária para garantir a efetividade da Constituição e das leis ambientais.
“Se conseguirmos engajar os Tribunais de Contas, a efetividade da Constituição e da legislação pode ser garantida. Vocês têm um corpo técnico de primeira qualidade e podem ser os garantidores dos direitos ambientais que a nossa geração não conseguiu entregar.”
Mediação
O painel teve a mediação do conselheiro do Tribunal de Contas do Amazonas (TCE-AM) e presidente do Comitê de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Instituto Rui Barbosa (IRB), Júlio Pinheiro, que reforçou o papel do sistema de controle externo como agente de transformação.
Ele lembrou que o TCE-AM foi pioneiro ao exigir dos municípios amazonenses a elaboração dos planos de gestão integrada de resíduos sólidos, passo essencial para o cumprimento da Lei 12.305/2010. “Há muitos anos temos trabalhado essa questão no Amazonas, desde a criação dos planos municipais de gestão integrada. Avançamos, mas ainda não entregamos o resultado que o país precisa. Os lixões continuam a céu aberto, produzindo doenças, contaminando rios e o lençol freático. Nosso desafio é transformar esse cenário em políticas públicas efetivas e sustentáveis.”
Texto: Flávia Rezende (TCE-AM)
Foto: Joel Arthus (TCE-AM)
Edição: Vinicius Appel (Atricon)