Levando as contas a sério

Nas últimas semanas, os jornais deram especial importância ao Tribunal de Contas da União (TCU) devido ao fato de ter, com ineditismo, concedido prazo à presidente da República para que apresentasse defesa às irregularidades intituladas de “pedaladas fiscais”. A prática foi constatada no relatório técnico que será analisado pela Corte de Contas para a formulação do parecer prévio. Esse fato trouxe inevitáveis discussões acerca da importância e conteúdo das decisões dos Tribunais de Contas, cuja relevância ainda não é clara ao cidadão.

A Constituição Federal diz que cabe aos Tribunais de Contas: 1 – a apreciação das contas prestadas anualmente pelo chefe do Poder Executivo, por intermédio de parecer prévio que será submetido a julgamento político pelo Parlamento; 2 – julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário (artigo 71, incisos I e II)

Aparentemente de fácil descrição, tais incisos têm há tempos causado um imbróglio no âmbito da Suprema Corte, que oscila entre ora reconhecer a competência dos Tribunais de Contas em exercer a função de jurisdição administrativa (julgar as contas), ora entender que tal mister é exclusivo do Parlamento no julgamento político, por intermédio do auxílio opinativo das Cortes de Contas, por meio do parecer prévio.

Primeira, a Constituição não é polissêmica e nem poderia ser. A lei maior do ordenamento jurídico reclama clareza e precisão em suas expressões. Nesta feita, cabe verificar que os dois incisos se utilizam de verbos distintos, com transitividades diferentes e que influem diretamente na competência dos órgãos de contas.

O primeiro inciso, destarte, registra “apreciação” (exame, mensuração, avaliação) pelo Tribunal, da prestação de contas de governo do chefe do Executivo, por intermédio de um parecer prévio (avaliação técnica opinativa), a ser encaminhado ao Poder Legislativo para que lá haja o julgamento, de caráter político, destas constas.

Ressalta-se que estamos falando das contas de governo, que consistem, basicamente, na análise das demonstrações contábeis, relatórios de gestão e dos demonstrativos da Lei de Responsabilidade Fiscal frente às metas previstas nos instrumentos de planejamento (Plano Plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentárias e Lei Orçamentária Anual). A Corte de Contas, neste âmbito, e sobre este ponto a jurisprudência é pacífica, exerce um papel meramente opinativo, sem cunho decisório, baseado em avaliação estritamente técnica.

Já o segundo inciso do dispositivo constitucional traz um verbo diferente: “julgar”, o qual, certamente não se confunde com “apreciar”, inscrito no inciso I. Aqui os Tribunais de Contas julgam, formulam um juízo de valor, decidem e é este ponto que ainda comporta tanta discussão.

Pode-se dizer que, neste segundo modelo, as contas apresentadas consistem em atos individualizados de gestão, levados a efeito pelos denominados “ordenadores de despesas”. Ou seja: “toda e qualquer autoridade de cujos atos resultem emissão de empenho, autorização de pagamento, suprimento ou dispêndio de recursos”.

São as chamadas “contas de gestão ou de ordenadores”, que cumprem o que dispõe o inciso II do art. 71 da Constituição Federal. Neste ponto, entendo que a competência para julgar os atos administrativos de gestão é privativa dos tribunais de contas, e, em sua manifestação mais recente sobre o tema, o STF também adotou esta posição.

Tanto na hipótese do parecer prévio, como no julgamento, os motivos de rejeição, no primeiro caso, e da irregularidade, no segundo, referem-se, via de regra, a vícios considerados insanáveis. Nesses casos, as consequências da decisão não se restringem às sanções impostas pela Corte de Contas, podendo, inclusive, se for o caso, resultar em inelegibilidade, a ser declarada pela Justiça Eleitoral.

Desta forma, é inegável a importância que possui o parecer prévio exarado pelos Tribunais de Contas, na sua tarefa de órgão constitucional de controle externo, principalmente como instrumento de controle social e transparência na gestão pública. Há que se consignar, ainda, que o parecer somente não prevalece se houver quórum específico no âmbito do Poder Legislativo. A Constituição somente é expressa quanto ao quórum exigido no âmbito dos municípios, que é de dois terços da Câmara Municipal, sendo que nos demais entes é necessária votação de maioria especial do Parlamento.

Pelo exposto, vê-se que, muito mais do que meramente opinativa e auxiliar do Legislativo, a atividade exercida pelos Tribunais de Contas, em sua competência dual, revela-se essencial à própria forma republicana de governo, principalmente no que tange ao cuidado que se deve ter com tudo que é de todos, de maneira que as contas pública devem sim ser levadas a sério.

 
Doris de Miranda Coutinho é conselheira do Tribunal de Contas do Estado do Tocantins
* Artigo publicado no Jornal Valor Econômico em 20/08/2015