Inaldo da Paixão Santos Araújo
“O homem chega e já desfaz a natureza, tira gente e põe represa, diz que tudo vai mudar”. Assim começa a canção “Sobradinho”, de Sá e Guarabyra, dupla carioca-baiana que, com arte e talento, mostrou o drama daquele que vê o rio engolir o esforço de uma vida e, por vezes, a própria vida. Se as cheias programadas do São Francisco “lá pra cima da Bahia”, na década de 1970, provocaram tanto dissabor, como imaginar o que causaram as inundações do Rio Grande do Sul em 2024?
A tragédia sem precedentes, causada principalmente pela cheia dos rios Jacuí, Taquari-Antas, Caí, Sinos e Gravataí, e, como consequência, do estuário do Guaíba e da Lagoa dos Patos, traz a necessidade de ações de solidariedade, de intervenções públicas, de planejamento para um desenvolvimento sustentável, da busca de experiência internacional, e, antes de tudo, de reflexão… de muita reflexão.
Escrevo este texto enquanto me vem à mente o poetizar de Ivan Lins: “Daquilo que eu sei, nem tudo me deu clareza, nem tudo foi permitido, nem tudo me deu certeza…” Penso, entretanto, que antes de se reconstruir, é necessária a elaboração de estudos de engenharia que considerem as projeções climáticas, pois não se pode errar novamente.
Sendo assim, sem fugir de minha messe de homem das contas públicas, uso este espaço para discorrer sobre três questões que considero relevantes sobre tão delicado, e catastrófico, tema. Primeiro, defendo a necessidade premente de passarmos a exigir a adoção de um relatório de sustentabilidade por parte da administração pública, assim como a divulgação dos trabalhos auditoriais sobre esses informes realizados pelos Tribunais de Contas.
Importante frisar que “a sustentabilidade inclui não apenas considerações ambientais, mas também os impactos sociais e econômicos das atividades humanas”, na forma prevista no Sumário Executivo “Preparando para a Divulgação e Asseguração de Relatórios de Sustentabilidade”, no setor público, elaborado conjuntamente pela Association of Chartered Certified Accountants (ACCA), pela Iniciativa de Desenvolvimento da INTOSAI (IDI) e pela International Federation of Accountants (IFAC) e disponível em https://idi.no/elibrary/professional-sais/1764-joint-paper-pi-ps-sustainability-summary-v4-english/file.
Essa ação se fez necessária, pois é preciso que as políticas públicas implementadas considerem os impactos das intervenções na sociedade e no meio ambiente. Não por outra razão, o citado Sumário destaca que “É crucial que o setor público demonstre liderança e impulsione ações para fazer avançar as agendas de sustentabilidade a nível global. Os governos e outros organismos do setor público precisam ser capazes de medir e comunicar a forma como estão enfrentando os desafios da sustentabilidade. Devem ser transparentes e demonstrar responsabilidade pelos impactos a longo prazo das suas decisões”.
Outro aspecto que considero relevante é que o fundo criado pelo governo do Rio Grande do Sul para receber doações por Pix para auxiliar as vítimas das chuvas que afetam o estado por semanas seja fiscalizado não por empresas privadas de auditoria, como vaticinou o governador do Estado, Eduardo Leite (CNN, em 13/05/2024), mas sim pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCE-RS), que possui, além da competência constitucional para fazê-lo, a expertise necessária para cumprir de forma tempestiva e efetiva esse mister.
De igual modo, os recursos disponibilizados pelo Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), nas modalidades de obras de proteção ambiental, infraestrutura, água, tratamento de esgoto e prevenção de desastres, infraestrutura agrícola, projetos de armazenagem e infraestrutura logística, também devem ser auditados pelo TCE-RS; que poderia contar com o auxílio dos Tribunais de Contas estaduais que já auditam os programas de desenvolvimento financiados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pelo Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD).
E assim penso porque os Tribunais de Contas, por serem órgãos técnicos, detêm autonomia suficiente para exercer suas funções fiscalizatórias de maneira independente. Além disso, a Carta Magna de 1988 explicitamente concedeu às Casas de Controle Externo a competência de realizar inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas da Federação, conforme disposto no seu art. 71, inciso IV.
De mais a mais, sei que será difícil e lenta a recuperação do estado. Mas passará. O sol sempre resplandece, assim como o Porto será sempre Alegre no Paralelo 30. Afinal, se no Sul o Rio é Grande, grande também é a determinação do povo que lá vive.
Inaldo da Paixão Santos Araújo – Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado da Bahia e vice-presidente de auditoria do Instituto Rui Barbosa