Mas será o Bonifácio?

Inaldo da Paixão Santos Araújo

Não! Não me confundi, pois esta crônica não é para rememorar o suposto episódio da nomeação de Benedito Valadares como interventor de Minas Gerais em 1933, feita pelo então presidente Getúlio Vargas. Contam que, na hora do anúncio, o rádio falhou e o público só ouviu uma parte da mensagem, começando a indagar: “Mas será o Benedito?” Se você não conhece essa história, caro leitor, mas tem curiosidade em conhecê-la, na rede mundial há vários caminhos para isso.

Contudo apresso-me em lhe dizer que o professor da Faculdade de Educação da USP, Jean Lauand, no artigo “Será o Benedito?Conto do Vigário” etc. – Desmascarando falsas explicações sobre a origem de expressões populares”, disponível em https://jornal.usp.br/cultura/mas-sera-o-benedito-fraseologia-ajuda-a-combater-fake-news/, afirma, com a propriedade de quem pesquisou e descobriu, que a frase “já era cantada numa marchinha de carnaval em 1931 – Todas as meninas vão perguntar: Será o Benedicto? –, que caiu na boca do povo, e foi até título de uma notícia publicada no Diário da Tarde, em 3 de março de 1933, sobre a compra de craques do Botafogo pelo Fluminense, entre eles um jogador chamado Benedicto”.

Ao final do artigo, o professor apresenta um conselho que, pela sua pertinência para a minha missão, a auditoria pública, e para a vida, vale a pena ser citado: “Após este percurso, no qual lançamos mão de diversos procedimentos de pesquisa e procuramos documentar cada passo, fica como resumo a sentença: Desconfiar e pesquisar sempre! Não importa a autoridade proveniente de diplomas, títulos, filiação acadêmica ou institucional. Não importa a postura onisciente e a fala categórica (o que só faz aumentar a suspeita…). Não importa a badalação e a subserviência que grandes apresentadores prestem aos gurus da etimologia. A única coisa que importa – com o perdão da jocosidade da expressão – é examinar o pau que matou (ou teria matado…) a cobra”.

Mas o Bonifácio ao qual me refiro no título era o mestre da cuíca da favela, bom de samba, bom de tudo. Dominado pela fama, deixou a sua marca e a sua história na Portela. Perdeu-se na Lapa e apaixonou-se pela negra Maristela. Abandonado pelo amor, foi encontrado morto, vítima de uma bala perdida, em uma das vielas do Rio de Janeiro e tornou-se bom de nada.

Conheci a história de “Bonifácio” em uma tarde de dezembro, enquanto jogava dominó com Seu Carlos Colavolpe e saboreava as deliciosas empadas feitas pelas mãos mágicas da Dona Nice. Ao ouvi-la, tolamente, confundi-me com a suposta história de Benedito que citei na introdução deste artigo e indaguei: “Mas será o Bonifácio?” Hoje, sorrio pelo autoengano.

Quem me contou cantando e tocando a história de “Bonifácio” foi o próprio Seu Colavolpe, por vocação, Juiz de Direito do Trabalho, hoje aposentado e, por paixão, artista da canção.

Conheci o Seu Cola, atualmente com seus 84 anos de vida, por intermédio de seus dois filhos (Cláudia e Cláudio, com muita criatividade), que também possuem seus dons artísticos e são meus amigos.

A canção “Bonifácio” foi gravada pela sambista carioca Teresa Cristina e está disponível nas mais diversas plataformas musicais. Ouça-a e delicie-se com um autêntico samba-canção brasileiro. Acredite, você não se arrependerá.

Certa feita, afirmei que “Domingo no parque”, de Gilberto Gil, era uma tragédia cantada. “Bonifácio” é uma história triste de amor sambada.

É uma pena que Seu Colavolpe tenha se dedicado mais ao direito do que ao samba. Embora tenha conquistado o mundo jurídico do trabalho por uma geração, o cancioneiro brasileiro perdeu um sambista à altura de Noel Rosa, Pixinguinha, Ataulfo Alves e Cartola.

Mesmo se dedicando ao direito, o juiz de escol por muito tempo animou as rodas de amigos com o seu conjunto “Demônio das coroas”. Ele, saudoso, mostra-me uma camisa que sua filha guardou com a logomarca do grupo. Era um desenho com o “adversário”, sim, o “tinhoso”, o “temba”, ao lado de duas “coroas” fogosas. Também faziam parte do trio Gileno e Poldinho, José Leopoldo Costa, o seu melhor amigo e que, infelizmente, já não está mais entre nós. Quando tocavam, diz Seu Cola, o samba imperava e, entre os amigos, sorteava-se uma camisa com a logomarca, ficando o agraciado com o encargo de organizar a rodada de samba subsequente. Bons tempos…

Foi bom ouvir a história de “Bonifácio” na voz do seu criador, melhor ainda foi conhecer parte da trajetória do seu compositor, que nos prova que os bons tempos se vão, mas ficam na memória, mesmo que, por vezes e infelizmente, apenas em parte.

Inaldo da Paixão Santos Araújoconselheiro do Tribunal de Contas do Estado da Bahia e vice-presidente de auditoria do Instituto Rui Barbosa.