Ministério da Criança

Cezar Miola

A partir do título, seria razoável cogitar de que se advoga a criação de mais uma Pasta na Esplanada, com seus custos e diferentes impactos. E, assim, que se está defendendo outra ideia simplista e onerosa, bem ao gosto de tantos “iluminados”.

Mas não é isso que se pretende. O que se coloca é somente uma singela provocação, sem incursionar indevidamente em questão que deve ser encaminhada à luz da legitimidade democrática, por quem investido pelo voto popular.

Na verdade, o único objetivo é destacar uma preocupação, que nem é nova, ancorada no artigo 227 da Constituição. Ali, com acerto e clareza, está dito que é “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. E esse “Estado” é o Estado brasileiro, como um todo, não se podendo, particularmente no caso da primeira infância, fazer coro à simplificadora leitura de que, por exemplo, na educação infantil, caberia ao Município uma espécie de responsabilidade exclusiva. Não! Trata-se de um dever a ser atendido de forma concertada, num ambiente de solidariedade e cooperação, reunindo, portanto, também a União e os Estados.

Aliás, essa pactuação (com estatura constitucional, repita-se) se mostra como pressuposto para que a intersetorialidade e a transversalidade, absolutamente essenciais nas políticas públicas voltadas à primeira infância, sejam colocadas em prática. Neste ponto, vale mencionar as conclusões do Grupo de Trabalho do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável, da Presidência da República[1].

Então, quem cuidará de amarrar todas as pontas envolvidas, de modo que esse conjunto de garantias tenha eficácia e efetividade? Isso porque já não se trata de saber se cabe ao Poder Público definir, implementar e avaliar políticas públicas voltadas à criança; no caso, não há espaço para escolhas, haja vista que estas já foram feitas pelo constituinte originário. O que se coloca, assim, é sobre como se colocará em pé o robusto texto garantidor, o qual se harmoniza com inúmeros outros, da própria Lei Maior (como o art. 6º, por exemplo) e no plano infraconstitucional (casos do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, além do Marco Legal da Primeira Infância). Isso tudo num território sabidamente marcado por desigualdades e especificidades (o que também nos remete às “múltiplas infâncias”[2]). E permeando o panorama, as tantas forças políticas antagônicas e a profunda disparidade das capacidades orçamentárias.

Aliás, não é por ausência de leis que melhor não estamos; temos boas regras, protetivas e indutoras (embora, claro, o tema aqui suscitado passe necessariamente por se revisitar o plano normativo). A propósito, particularmente sobre o ECA, em 13 de julho celebramos (e a palavra é mesmo esta) os 35 anos dessa notável e inovadora legislação.

Pode-se, então, trazer algumas das muitas razões pelas quais se justifica priorizar e organizar, de maneira eficiente, eficaz e efetiva, as ações voltadas à infância, uma vez que diversos dos meios, definições e estratégias utilizados não vêm se transformando em resultados concretos e abrangentes. Assim é que encontramos dispersão de esforços, sobreposições, “desorganização” de dados (ou restrições indevidas ao acesso), indefinições no âmbito da federação e, nesse contexto, falta de melhores resultados. Isso tudo quando se sabe que “muitas das coisas de que necessitamos podem esperar. A criança não pode… Seu nome é hoje” (Gabriela Mistral e sua poesia tantas vezes lembrada).

Se as escolhas já foram feitas no seio do pacto civilizatório de 1988, não há espaço para discricionariedade quanto ao particular. Está posto o dever/poder de implementar, cabendo decidir unicamente quanto aos caminhos a serem seguidos para tal. Enfim, quem cuida do quê (incluindo a responsabilização de gestores omissos ou negligentes), de qual forma, e com quais recursos?

A propósito de recursos, se “o lugar da criança é no orçamento público”, é preciso que, em todos os entes federados, a legislação orçamentária trate de cuidar da primeira infância (lembrando que, neste 2025, os Municípios devem votar seus Planos Plurianuais para o quadriênio 2026/2029).

E é aqui que a caminhada dos órgãos de controle, em todo o país, nos mostra as muitas “oportunidades de melhoria”, com a adoção de estratégias multissetoriais relacionadas, exemplificativamente, a programas de saúde, educação, nutrição e proteção social. Melhorias essas traduzidas no acesso e permanência nos estabelecimentos de educação infantil, com acolhimento, proteção e estímulos; nos cuidados responsivos; na segurança; nos espaços urbanos adequados; na saúde de cuidadores e de crianças (onde a cobertura vacinal se mostra primordial). Enfim, na prática de tudo o que se traduz na parentalidade.

A sabedoria de Santo Agostinho nos ensina que “não basta fazer coisas boas, é preciso fazê-las bem”. Certamente, todos os atores institucionais e da sociedade estão imbuídos dos melhores propósitos (“fazer coisas boas”). Porém, conquanto tenhamos, Brasil afora, evidências robustas e práticas comprovadamente exitosas (demonstrando que sabemos bem executar), as respostas ainda são insuficientes. Por isso, se não por um Ministério da Criança (que aqui, repita-se, serve exclusivamente como apelo argumentativo), é preciso organizar, pactuar, articular, coordenar, monitorar, implementar e avaliar todas as políticas públicas voltadas às nossas crianças (é o “fazer bem”).

No cenário atual, por mais que se reconheça o engajamento, o espírito público e o real propósito de incontáveis atores no cuidar das nossas meninas e dos nossos meninos, a dispersão de ações em nada contribui para se concretizarem os seus direitos com a urgência e a efetividade que se impõem.

Na verdade, numa tentativa de ser claro, o que se defende é uma governança interfederativa, multinível, estabelecida em bases legais consistentes, representativa, plural e empoderada[3], que coloque o interesse público (o das crianças, no caso) acima de tudo. Para isso, é necessário abandonar vaidades ou apegos a rançosos argumentos, que, a pretexto de cautela ou de ponderação, mal conseguem disfarçar as muitas faces do patrimonialismo que ainda viceja em certas esferas de poder.

De sua parte, os Tribunais de Contas brasileiros, juntamente com as entidades representativas do sistema, têm contribuído intensamente para que ocorram mais e melhores entregas. E vão continuar a fazê-lo, sempre respeitando a moldura delimitada pela Constituição quanto às suas competências. Isso porque, na inspirada síntese do Ministro Carlos Ayres Britto, não sendo governo, podem ajudar o governo e contribuir para impedir o desgoverno.

[1] Disponíveis em https://todospelaeducacao.org.br/wordpress/wp-content/uploads/2024/06/relatorio-pnipi-2024.pdf.

[2] “O conceito de múltiplas infâncias está relacionado com a ideia de que existem diferentes experiências de infância, que variam de acordo com o contexto em que determinada pessoa está inserida. Espaço geográfico, realidade social, gênero e idade: todos esses fatores proporcionam vivências que devem ser consideradas em sua diversidade.” Fonte: Instituto Alana. Disponível em https://alana.org.br/glossario/multiplas-infancias/.

[3] Quando do fechamento deste texto, teve-se a informação de que um projeto de lei estaria sendo preparado no âmbito do Governo Federal, dispondo a respeito. Mesmo não se conhecendo o conteúdo, trata-se de um alento, trazendo justificadas expectativas de que poderemos, concretamente, avançar nessa necessária regulação.

Cezar Miola é vice-presidente de Relações Político-Institucionais da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon)

*Artigo publicado originalmente no jornal Estadão