A rigor, nada de novo sob o sol. Ciclos econômicos de baixo crescimento da renda, da produção e do emprego, como o que ocorre atualmente no Brasil, são inerentes ao sistema capitalista. Na verdade, já vivenciamos, em passado não tão distante, conjunturas muito mais traumáticas e agudas, mas o fato é que os efeitos da atual crise impactam negativamente o setor privado e, em especial, a sustentabilidade fiscal dos Estados e Municípios brasileiros.
Sem esquecer dos nossos próprios entraves e gargalos históricos, – a exemplo dos que encontramos na educação, na infraestrutura, na burocracia, na carga tributária, nos desvios éticos, no anacronismo do ordenamento político-eleitoral –, a atual crise financeira é resultado, em grande medida, da crise global que assola especialmente os EUA, a Europa e a China, nossos mais importantes parceiros comerciais.
O efeito globalizado da crise fica mais evidente se fizermos uma analogia com o chamado “efeito borboleta” – conceito desenvolvido pelo filósofo e matemático americano Edward Lorenz para explicar a “teoria do caos”. Se um industrial chinês cancela uma importação de soja ou de minério de ferro de um fornecedor brasileiro, isso pode gerar, por exemplo, uma queda de renda e emprego no Brasil, uma queda da arrecadação de nossos tributos, uma queda dos repasses constitucionais tributários (FPE e FPM) do Governo Federal aos Estados e Municípios, a necessidade de os Municípios ajustarem suas contas, afastando servidores e cancelando novos investimentos.
Mas os efeitos negativos não param por aí. Seguindo a cartilha de índole “keynesiana”, a política anticíclica adotada pelo Governo Federal, com o objetivo de reaquecer a economia – via desoneração do IPI e da Cide-combustíveis, por exemplo –, reforça, em curto prazo, a queda no montante das referidas transferências, fomentando ainda mais o desequilíbrio fiscal dos Municípios. Dois dados econômico-financeiros atestam a crise e seus efeitos: o PIB só crescerá em torno de 1% em 2012 e a perda de receitas dos Municípios neste ano atingiu o vultoso valor de 25 bilhões de reais, segundo dados da Confederação Nacional dos Municípios.
Diante deste cenário complexo, é inconteste que os governantes municipais (e também os estaduais, igualmente atingidos pela crise) tragam à tona o debate sobre um novo federalismo fiscal, ou seja, sobre uma forma mais justa e equânime de repartição do bolo tributário nacional. Acrescente-se que um novo federalismo fiscal não se faz necessário apenas em razão da atual crise. O pecado original remonta à própria criação da federação brasileira, cujos entes surgiram a partir de um Estado unitário e tradicionalmente centralizador. O centralismo fiscal sempre foi uma marca da nossa federação. As competências tributárias dos governos estaduais e municipais nunca foram suficientes para assegurar-lhes a verdadeira autonomia financeira, característica agravada, a partir dos anos noventa, pela criação de contribuições sociais e econômicas – tributos arrecadados pelo governo federal não transferidos automaticamente para os demais entes –, o que acabou gerando uma crescente dependência, especialmente dos pequenos e médios Municípios, das receitas de convênios repassadas discricionária e politicamente pelo governo federal.
Vai daí que a luta política e institucional por um novo pacto federativo, por todos os motivos, históricos e contemporâneos, revela-se legítima, necessária e urgente. Nada obstante, o tempo das discussões e dos consensos políticos dificilmente coincide com o tempo social, econômico e fiscal. Basta lembrar a dificuldade de aprovação até mesmo de pequenas reformas tributárias, da regulamentação dos critérios de rateio do FPE, como determinado pelo STF, e de todos os debates e controvérsias políticas e jurídicas sobre a divisão dos royalties do pré-sal.
Sabendo-se que um novo pacto federal não será concretizado em curto ou médio prazos, caberá aos novos gestores municipais enfrentarem os enormes desafios com medidas corajosas e inovadoras. Urge, em primeiro lugar, fazer o dever de casa, que pode ser traduzido numa palavra-atitude: responsabilidade. Num contexto de crise, algumas medidas imediatas devem ser tomadas, como por exemplo: (a) passar um “pente fino” nos contratos em andamento, rescindindo os que estiverem em desacordo com a lei e repactuando os preços de outros que se revelem acima do mercado e (b) racionalizar o gasto, escolhendo as reais prioridades dos cidadãos à luz dos preceitos da LRF (não se revela uma atitude responsável, neste momento, por exemplo, manter o nível de gastos com festividades e shows ou iniciar novas obras sem a conclusão de outras em andamento).
Passado esse período inicial, outras ações estruturadoras devem ser tomadas, como, por exemplo: (a) instituir e cobrar efetivamente os impostos locais (ISS, IPTU…), o que não costuma acontecer nos pequenos e médios municípios; (b) implementar um planejamento estratégico de médio-longo prazos, com definição de políticas públicas prioritárias, indicadores, metas, responsabilidades e monitoramento sistemático; (c) estruturar e profissionalizar o sistema de controle interno municipal e instituir uma procuradoria jurídica pública; (d) incentivar a economia local por meio do cumprimento da lei das micro e pequenas empresas e, por fim, (e) estabelecer uma relação transparente com os cidadãos, a partir do fiel cumprimento da lei de acesso à informação e dos regramentos da nova contabilidade pública nacional.
Os Tribunais de Contas, além do seu precípuo papel constitucional de guardião da república e da democracia, especialmente quando examina, previne e julga periodicamente a regularidade da aplicação dos recursos públicos, não podem ignorar essa conjuntura de crise fiscal dos municípios. Como já é da sua tradição, os Tribunais devem adotar uma posição de parceria e diálogo com os novos gestores, especialmente daqueles que demonstrarem uma atitude responsável diante deste grave momento. Os seus membros, o corpo técnico e, particularmente, as suas Escolas de Contas, devem não só se colocar à disposição para ajudar os novos gestores, mas serem proativos com a realização de seminários e a disponibilização de cursos específicos focados nos temas mais importantes para o atual momento das administrações municipais.
Dizer que crise é, ao mesmo tempo, oportunidade já virou lugar-comum. Mas é pura verdade. Os problemas e os desafios são grandes, mas, a cada novo período de gestão, como o que se iniciou no último janeiro, as esperanças de superação desses obstáculos são renovadas. A máquina da democracia, que, a cada quatro anos, produz esses novos ciclos de esperanças, é a mola-mestra indutora deste eterno estado de devir, desta perene e natural perspectiva de mudanças, ainda que, em muitos casos, os gestores tenham sido reeleitos. Heráclito, filósofo pré-socrático, na defesa do eterno estado de devir, já dizia que “Um homem não entra no mesmo rio duas vezes. Da segunda vez, nem ele nem o rio serão os mesmos”. Não interrompamos, pois, o curso normal do rio do nosso destino: novos gestores, novas gestões, novas esperanças.
Valdecir Fernandes Pascoal
Conselheiro Vice-Presidente do TCE-PE e da Atricon