O avanço da Contabilidade Pública no Brasil: um sonho que venceu a inércia

Inaldo da Paixão Santos Araújo

Há exatos 21 anos, ainda em 2004, recebi a honrosa indicação do saudoso contador-mor e professor Sudário Aguiar Cunha para integrar uma comissão do Conselho Federal de Contabilidade (CFC), que tinha como missão revisitar os aspectos contábeis da Lei Federal nº 4.320/1964 — marco histórico da administração orçamentária e financeira do país. A tarefa, à primeira vista técnica, escondia uma complexidade política: à época, já se travava o debate sobre o caráter autorizativo ou impositivo do orçamento público brasileiro, o que acabou por paralisar o avanço dos trabalhos. Simultaneamente, outra comissão se debruçava sobre a modernização das normas de Contabilidade Pública, mas também sem resultados conclusivos.

Recordo que, ao compartilhar minha participação nessa comissão com um colega, recebi como resposta um desencorajamento: “Não perca seu tempo, isso não dará em nada”. Preferi, no entanto, ignorar o ceticismo. Sempre acreditei que sonhar não é bobagem — é um ato de esperança e coragem.

O tempo passou e, em 2006, o acaso me presenteou com um breve encontro de elevador com a recém-eleita presidente do CFC, Maria Clara Bugarim. Ali, ao parabenizá-la, aproveitei para lhe fazer um pedido: que resgatasse os trabalhos interrompidos e ajudasse a escrever um novo capítulo da Contabilidade Pública brasileira. Pedido feito, pedido atendido. Com a articulação do CFC e o empenho da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), nasceu um marco: as Normas Brasileiras de Contabilidade Aplicada ao Setor Público (NBC TSP), hoje disponíveis no portal do CFC, inspiradas nas Normas Internacionais de Contabilidade para o Setor Público (IPSAS, na sigla em inglês) da Federação Internacional de Contadores (IFAC, na sigla em inglês). Soma-se a elas o Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público (MCASP), editado pela STN, que já conta com sua 11ª edição, como uma ferramenta essencial ao planejamento, à execução orçamentária e ao controle do patrimônio público — resgatando o verdadeiro objeto da ciência contábil.

Mais recentemente, testemunhei dois lançamentos que reforçam a certeza de que valeu a pena acreditar: o livro Contabilidade Aplicada ao Setor Público na Prática, coordenado pelas professoras Daiana da Paixão e Elisangela Fernandes, e a primeira edição da Revista Brasileira de Auditoria do Setor Público (RBASP), coordenada pelo professor Jorge Carvalho, publicada pelo Instituto Rui Barbosa (IRB), com o apoio do Banco Mundial (BIRD). Cada uma dessas iniciativas representa o avanço concreto de um campo do conhecimento antes relegado ao tecnicismo burocrático. Como na canção de Gonzaguinha: “Começaria tudo outra vez, se preciso fosse…”

Mas há outro pensamento que sempre me acompanha: o de Ruy Barbosa. Em 1890, ao justificar a criação do Tribunal de Contas da União, o eterno Ruy apontava a debilidade do sistema orçamentário como um dos maiores problemas da administração pública e assim afirmava: “O sistema de contabilidade orçamentária é defeituoso no seu mecanismo e fraco na sua execução”. Lembrar disso me faz refletir sobre o paradoxo que vivemos hoje. Ruy, se estivesse entre nós, teria motivos para tristeza e para júbilo.

Tristeza, certamente, ao ver o enfraquecimento do sistema de freios e contrapesos — base de um Estado Democrático de Direito. Tristeza diante da incompreensão generalizada sobre a importância da separação e da harmonia entre os Poderes. Tristeza ao constatar o desrespeito aos princípios orçamentários fundamentais, a opacidade de certos gastos e a falta da devida atenção pelo controle externo independente — aquela voz da razão que, entre quem autoriza e quem executa, precisa sempre existir, representada pelos Tribunais de Contas.

Mas Ruy também se alegraria. Alegrar-se-ia com a transição de uma contabilidade meramente orçamentária para uma contabilidade patrimonial, conforme os modernos preceitos das NBC TSP, pautados nas características qualitativas da relevância, da representação fidedigna, da compreensibilidade, da tempestividade, da comparabilidade e da verificabilidade, observando-se as restrições inerentes da materialidade, do custo-benefício e do alcance do equilíbrio apropriado das citadas características qualitativas. Comemoraria a inclusão do artigo 163-A na Constituição Federal, estabelecendo que as informações contábeis públicas devem assegurar rastreabilidade, comparabilidade e publicidade. Vibraria com o fortalecimento da transparência, consagrado pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). E, sobretudo, se sentiria vitorioso ao ver que a Emenda Constitucional nº 109/2021 consagrou a obrigatoriedade da avaliação das políticas públicas — verdadeira síntese da boa governança, na forma descrita nos artigos 37, §16; e 165, §16, da nossa Carta Magna. Esses dispositivos, em síntese, estabelecem a necessidade de se avaliar as políticas públicas, de publicizar o resultado dessas avaliações e de considerar esses resultados na elaboração dos instrumentos de planejamento (Plano Plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentárias e Lei Orçamentária Anual).

Por fim, creio que Ruy Barbosa, patrono dos Tribunais de Contas do Brasil, se sentiria especialmente orgulhoso ao ver que é na Bahia, sua terra, que despontam profissionais comprometidos com o avanço da Contabilidade Pública nacional. A obra coordenada por Daiana da Paixão e Elisangela Fernandes, assim como a nossa RBASP, é uma demonstração inequívoca da maturidade dessa área no Brasil. Um sinal de que, mesmo em tempos difíceis, sonhar ainda vale a pena.

Porque, como aprendi há 21 anos, não existe sonho inútil. E a história da Contabilidade Pública brasileira é, ela mesma, a prova viva de que acreditar é o primeiro passo para transformar.

Inaldo da Paixão Santos Araújo é conselheiro-corregedor do Tribunal de Contas do Estado da Bahia (TCE-BA) e vice-presidente de Auditoria do Instituto Rui Barbosa (IRB)