Sebastião Domingos Gunza
A Constituição da República de Angola sugere a existência de reservas especiais de jurisdição no sentido de reservar a certos tribunais o julgamento de certos litígios. Assim, por exemplo, estabelece o artigo 180.º a competência do Tribunal Constitucional para administrar a “justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional”. Ao Tribunal de Contas é reconhecida a competência para a “fiscalização da legalidade das finanças públicas e de julgamento das contas que a lei sujeitar à sua jurisdição” (artigo 182.º).
Um critério orgânico (Tribunal Constitucional e Tribunal de Contas) articulado com um critério material (“matérias de natureza jurídico-constitucional” e “fiscalização da legalidade das finanças públicas”) servem de suporte à configuração constitucional de reservas especiais de jurisdição.
Estas reservas especiais de jurisdição estão relacionadas com a organização plural do poder judicial desenhada na Constituição.
O texto constitucional não especifica concretamente as competências do Tribunal de Contas (TdC). É indiscutível tratar-se de um «tribunal» (artigo 176.º, n.º 1), com as características de um órgão constitucional, institucional e funcionalmente autónomo (artigo 178.º).
Com efeito, o Tribunal de Contas de Angola não pertence ao âmbito de competência de qualquer ministério, nem está sujeito a quaisquer directivas, ordens ou instruções dos outros órgãos de soberania.
O legislador constitucional estatui no artigo 182.º que o Tribunal de Contas fiscaliza a legalidade e julga as contas que a lei sujeita à sua jurisdição. Nestes termos se estabelece a distinção entre poderes de Controlo financeiro e Jurisdição, e ainda que não especifica o que entende por estes diferentes poderes, parece nítido que no primeiro grupo se incluem as funções tradicionais e transversais às instituições superiores de controlo externo, enquanto que no segundo grupo está contida a função jurisdicional do tribunal, que se consubstancia na efectivação de responsabilidades por infracções financeiras mediante processos de julgamento de contas.
Refira que o enquadramento contido na Constituição, no tocante às competências do Tribunal de Contas, esbate a dicotomia tradicional entre os organismos jurisdicionais de controlo e as entidades de auditorias independentes sem qualquer característica jurisdicional.
Via de regra, os Tribunais de Contas e instituições superiores de controlo (ISC) têm natureza colegial e exercem a função de fiscalização e auditoria e a função jurisdicional de julgamento, maxime, da responsabilidade financeira. Nalguns casos, tendem a privilegiar o controlo da legalidade e da regularidade financeira. O controlo é exercido a posteriori (fiscalização sucessiva) e, nalguns casos, também a priori (fiscalização preventiva).
Destarte, o Tribunal de Contas de Angola insere-se neste modelo, ao lado, designadamente, dos Tribunais de Contas de Portugal, Espanha, França, Bélgica, Itália, Luxemburgo, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau e Moçambique.
Por outro lado, o modelo de Auditor Geral, acolhido sobretudo no mundo anglo-saxónico, caracteriza-se pela existência de um órgão singular, com funções exclusivas de auditoria, tendendo a privilegiar o controlo da boa gestão financeira. Em regra, o controlo exercido é concomitante e sucessivo ou de auditoria, estando excluída a fiscalização preventiva. Como exemplos deste modelo, podemos apontar os casos do Reino Unido, EUA, Irlanda, Canadá, Dinamarca, Noruega e Suécia.
Há, porém, Estados que instituíram um órgão de controlo financeiro de natureza mista, combinando características dos modelos de tribunal de contas e de auditor geral. Na verdade, há exemplos de Tribunais de Contas, com a sua natureza colegial, que não têm poderes jurisdicionais, exercendo apenas a função de auditoria suprema e sem poderes de fiscalização preventiva, mas tão só concomitante e sucessiva.
Podemos apontar como exemplos deste modelo misto o Tribunal de Contas Europeu e os Tribunais de Contas alemão e holandês.
Posto tudo o que antecede, percebe-se como a actividade do Tribunal de Contas desenvolve-se em todo o perímetro da gestão pública, abrangendo a utilização de dinheiros públicos efectuada por qualquer entidade pública no sentido próprio, mas também, – e, digo, acertadamente – as entidades de qualquer natureza, mesmo privada, que tenham participações de capitais públicos ou sejam beneficiárias, a qualquer título, de dinheiros públicos. Portanto, trata-se de uma espécie de direito de sequela ou perseguição dos dinheiros púbicos.
Sebastião Domingos Gunza – Juiz Conselheiro, Presidente do Tribunal de Contas de Angola
* Texto redigido em português de Angola.