Inaldo da Paixão
Em um país onde, por vezes, a versão supera os fatos e a política ainda grita mais alto que a técnica, há um documento que poucos conhecem — embora devesse estar no centro do debate sobre o uso do dinheiro público: o parecer prévio dos Tribunais de Contas emitido anualmente sobre as contas prestadas pelos chefes dos poderes executivos.
Sim, ele existe. É um mandamento constitucional (Ex vi art. 71, I, da Constituição Federal). Silencioso, técnico, imparcial. Um parecer que não julga, mas ilumina. Não determina, mas orienta. Não trava, mas liberta. Que não condena, mas revela. Que não acusa, mas informa: “Esta conta está (ou não está) de acordo com a Constituição? Com as leis? Com os princípios da boa governança?”
O parecer prévio é, talvez, o exame de consciência de um governo ao final do exercício. Nele se condensa o trabalho minucioso de auditores, a observância ou não dos limites constitucionais e legais, a interpretação rigorosa das normas de contabilidade pública e o compromisso — tão raro quanto necessário — com a objetividade e com a transparência. Mas, paradoxalmente, esse documento nasce para ser ignorado. Como já se escreveu, é um ilustre desconhecido.
No entanto, é nele que o Parlamento deve se apoiar ao julgar as contas do Chefe do Poder Executivo. Não como um favor, mas como um dever. Pois é esse parecer que oferece o “aval técnico” para uma decisão política. E toda decisão política que ignora a técnica, sem explicação motivada, é, como bem ensinou Luciano Ferraz, uma afronta ao devido processo legal.
Mais do que um rito burocrático, o parecer prévio é um instrumento de cidadania. Quando bem elaborado, permite que cada cidadão saiba, de forma clara, se o governo arrecadou, gastou, investiu, e — sobretudo — se fez isso respeitando os limites da lei e os princípios constitucionais. É, em essência, um convite à democracia substantiva: aquela que exige uma prestação de contas transparente, e não apenas discursos.
Desde o ano 2000, o Tribunal de Contas do Estado da Bahia (TCE-BA) tem dado passos firmes na evolução dessa ferramenta. Abandonou o parecer resumido, com base em “considerandos”, e adotou critérios de auditoria consagrados, alinhou-se às normas internacionais de auditoria pública e introduziu, entre outros aspectos, as “bases de opinião” emitidas e os chamados “assuntos relevantes”, que aproximam o cidadão dos bastidores da fiscalização ao dar maior transparência à auditoria realizada, fornecendo informações adicionais aos usuários previstos das demonstrações contábeis. Não é mais um documento protocolar, mas uma peça viva, com linguagem clara e estruturada, que mostra os riscos enfrentados e as decisões que moldam o orçamento público. O linguajar ainda abusa do tecnicismo – é verdade –, entretanto a própria Lei de Responsabilidade Fiscal de 2000 já determina a elaboração da versão simplificada dessa peça.
Mas é preciso mais. É preciso que o parecer prévio seja lido nas escolas, debatido nas câmaras, nas assembleias e no congresso, que seja divulgado pelos jornais. É essencial que seja um objeto de estudo e de pesquisa no ambiente saudável das academias. Que ele não fique restrito ao Diário Oficial ou ao anexo técnico das decisões legislativas. Porque ali está o retrato da responsabilidade — ou da omissão. E enquanto o retrato ficar escondido, o rosto da má gestão continuará, por certo, impune.
O parecer prévio precisa sair do limbo institucional e ganhar voz entre os que pagam impostos e esperam serviços. Esse documento precisa ser a cúspide da boa governação. Ele é, ao fim e ao cabo, um retrato anual do que foi feito com os recursos públicos. Quando o cidadão ler e compreender esse retrato, passará a cobrar com mais firmeza, a votar com mais consciência, a escolher com mais critério. Afinal, precisamos todos saber o que é feito com nosso dinheiro. Dinheiro que é fruto do suor do nosso rosto.
Ignorar esse documento é desperdiçar um instrumento de mudança. É como jogar fora a bússola e navegar à deriva no oceano das finanças públicas. O Brasil, com sua história marcada por escândalos, ineficiências, distorções, “coisas secretas”, malfeitos e improvisações, precisa, mais do que nunca, de bússolas confiáveis. E o parecer prévio é, indubitavelmente, uma delas.
Por tudo isso, volto ao começo: o parecer prévio não é só um documento técnico. É, ou deveria ser, um espelho da gestão pública. Um espelho que não distorce, que não elogia nem ataca, mas mostra — com luz e precisão — o que os números contam e o que os discursos escondem.
E se ele continua sendo solenemente ignorado, talvez ainda reste a nós, servidores e cidadãos, a missão de torná-lo conhecido. Porque um governo que cuida de gente e presta contas de verdade começa por respeitar o parecer que ninguém vê.
Inaldo da Paixão é conselheiro do TCE-BA e vice-presidente do Instituto Rui Barbosa (IRB)
Artigo originalmente publicado na Tribuna da Bahia em 11.08.2025