Os 133 anos do Estado laico: por que comemorar?

Raul Seixas (1945-1989), cantor, compositor, guitarrista e produtor, um dos ícones do rock no Brasil, lançou, em 1974, o álbum “Gita”, e, num verso de uma das músicas do memorável LP, pregava: “Faça o que tu queres, pois é tudo da lei”.

Se ele tivesse vivido e escrito a letra antes de 1891, essa liberdade não alcançaria a prática de nenhuma outra crença que não a religião Católica Apostólica Romana, que era a oficial. Desde a Colônia e durante o Império não havia, no Brasil, separação entre Igreja e Estado. A ausência de liberdade de crença implicava em estigma para os não católicos. As religiões “protestantes” trazidas por ingleses ou alemães eram toleradas, desde que com pouca visibilidade. Seus prédios não podiam parecer igrejas. Outras eram clandestinas e perseguidas explicitamente como as de matriz africana. Aquele que cultuasse uma religião diferente poderia ser considerado como um “Cowboy fora da lei”.

Com a promulgação da Constituição brasileira de 1891 (Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil), a segunda do país e a primeira do período republicano, passou a ser “vedado aos Estados, como à União, estabelecer, subvencionar, ou embaraçar o exercício de cultos religiosos” (§ 2º do artigo 11). O Estado brasileiro tomou para si o ideal de laicidade, abdicando da adoção de uma igreja oficial, uma conquista para muitos que sacrificaram suas vidas defendendo seus cultos em cenários de imposição religiosa que marcaram a história, como a Inquisição.

Então, há pouco mais de um século, passou a ser permitido, usando as metáforas do Maluco Beleza, “tomar banho de chapéu”, de pipoca ou de folha; “esperar Papai Noel”, comungar, meditar, orar, psicografar; “discutir Carlos Gardel”, a bíblia, o alcorão, os salmos, o torá…

Quando se opta pela laicidade não significa que está abolida a religiosidade, mas, sim, que há liberdade de cultuar toda e qualquer religião, inclusive sincreticamente, e o mais importante: não secretamente. O Estado laico pressupõe uma postura de neutralidade religiosa, como defende André Ramos Tavares, mas não se propugna um Estado contra a religião.

Ainda hoje abraçamos a ampla expressão de fé e de espiritualidade dos cidadãos e abrigamos a possibilidade de se escolher ser ateu ou agnóstico. A liberdade de crença é garantida como direito fundamental quando a Constituição de 1988 estabelece que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (art. 5º, VI). Além disso, é preservada a laicidade quando ao Poder Público é vedado “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público” (art. 19, I).

Nessa linha, são cada vez mais frequentes, inclusive em órgãos públicos, os cultos ecumênicos que reúnem representantes de diversas religiões, como candomblé, umbanda, espiritismo, evangelismo, cristianismo, judaísmo, budismo, islamismo, hinduísmo, dentre outras. Em 17/12/2023, por exemplo, houve o 12º Encontro Inter-religioso no Tribunal de Contas do Estado da Bahia, e todos os líderes convidados, sem exceção, exaltaram a liberdade religiosa e clamaram por tolerância e respeito, como uma verdadeira senha para abrir portas, janelas e construir pontes entre as religiões.

E por que passados mais de um século do estabelecimento da laicidade no Brasil, além de comemorar esse avanço como um grande passo civilizatório, ainda é preciso reforçar o necessário compromisso com a tolerância e o respeito entre as religiões?

O incêndio da escultura de Mãe Stella de Oxóssi, ocorrido em 04/12/2022, na avenida que leva o nome da ialorixá, em Salvador, por si responde à pergunta e não deve ser esquecido, como tantos outros vandalismos e mortes que não conseguimos evitar.

Sem o Estado laico, poderíamos ainda estar não só queimando esculturas, mas, sim, livros e gente em fogueiras. A laicidade significa respeito ao pluralismo de crença, defesa da diversidade e tolerância religiosa, e representa nossa convicção pessoal. Além disso, as igrejas, independentemente de qual religião seja, “podem ser importantes aliadas na defesa dos direitos humanos e da mobilização do povo brasileiro”, como defende Joviniano Neto.

Por tudo isso, e sendo nosso tempo o agora, temos muito a celebrar e a construir nesse 24 de fevereiro, quando comemoramos 133 anos da primeira Carta Republicana. Viva o Estado Laico! “Viva! Viva!

Morgana Bellazzi de Carvalho – Auditora de Contas Públicas do Tribunal de Contas do Estado da Bahia (TCE-BA)