Nas palavras de Montesquieu (1689/1755): “(…) é uma experiência eterna a de que todo homem que tem poder tende a abusar dele; ele vai até onde encontra limites.” Estas palavras de Montesquieu foram repetidas na contemporaneidade pelo jusfilósofo Italiano Norberto Bobbio nos seguintes termos: “a tendência natural do Estado é ocultar-se”. E como o Estado não é uma abstração, ele se concretiza na ação dos seus agentes, então podemos concluir que, por palavras diferentes, ambos – Montesquieu e Bobbio – constataram a tendência autoritário dos que assumem o poder e por consequência sugeriram, como meio para evitar as consequências danosas de regimes autocráticos, mecanismos rigorosos de controle do poder.
Nas lições de Montesquieu o controle do poder se daria no fortalecimento de instituições de Estado o que implicaria na constituição de poderes autônomos – Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário – nasce aí a “Teoria Tripartite ” com propósito de evitar a concentração do poder político em mãos de poucos . Esta teoria é a base fundamental do chamado “checks and balances”, ou no bom português “freios e contrapesos” que no cotidiano da relação de poder implica num poder controlando o outro, de modo que num processo dialético, cada um com suas competências previamente definidas, alcance o necessário equilíbrio estável na permanente edificação da desejada, porém, inacabada harmonia social.
Nas palavras de Norberto Bobbio: “O único modo de se chegar a um acordo quando se fala em democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governos autocráticos, é o de considera-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelece quem está autorizado a tomar decisões coletivas e com quais procedimentos.”
Nos Estados Nacionais, diante de tamanha diversidade de interesses materiais e ideológicos, nenhum corpo social sobrevive sem normas jurídicas que disciplinem padrões de comportamento tolerados por todos. O que diferencia, em termos axiológicos, a democracia das demais experiências de governo é justamente o fato de tais normas não serem impostas, mas pactuadas, adotando para este fim a regra da maioria.
Num Estado Democrático de Direito a própria capacidade criativa do Direito ao qual o Estado se sujeitará necessita estar amparada e limitada por regramentos e critérios próprios, de modo que o Poder que aplica o Direito do Estado não é o mesmo que o editou, nem é aquele que tem a última palavra na sua interpretação.
A concepção do Estado de Direito, além de exigir o primado de uma Constituição como norma fundamental, norteadora e limitadora Estado, consagra como um de seus pilares a ideia de separação das funções estatais, de modo a potencializar o controle do poder político. Na moldura conferida ao Estado brasileiro pela Constituição de 1988, o princípio da separação dos poderes encontra-se assentado como um de seus princípios fundamentais.
A noção subjacente a tal princípio é que o exercício do Poder seja limitado, de forma que o Poder controle o próprio do Poder, como forma de evitar o seu exercício abusivo e garantir, por exemplo, o respeito às liberdades individuais – aqui, vale à pena destacar que na Democracia é importante viabilizar mecanismos de controle social como forma de participação da sociedade nos rumos do Estado.
Essa dimensão de controle de um poder sobre o outro, baseado na harmonia entre os poderes e de mecanismos participativos da sociedade, é o que viabiliza o equilíbrio estável no Estado Democrático de Direito. Entretanto, este equilíbrio pressupõe o fortalecimento das instituições de estado, pois é no controle recíproco, identificado como freios e contrapesos, que se evitam os exageros praticados no exercício do poder.
Um debate que vem de longa data, mas que ganhou contornos marcantes a partir da alteração da correlação de forças na sociedade brasileira, em particular com os eventos políticos ocorridos a partir de 2016, cuja corrente que o conceitua como golpe eu acompanho, que desemboca na atual correlação de forças, onde uma certa autoproclamada Direita tenta, de todas as formas, fragilizar a democracia, corroendo por dentro suas estruturas, fragilizam o pacto constitucional de 88 e produz conflitos constantes ao invés de trabalhar a unificação dos brasileiros.
O embate provocado pelas forças políticas no poder central com instituições de Estado como o Supremo Tribunal Federal e setores do Congresso, é do conhecimento de todos nós, e objeto de preocupação com o futuro da nossa estabilidade política, conquistada a duras penas, expressa no pacto constitucional de 88. Destaca-se que a Constituição cidadã de 1988 é o principal marco de ruptura com o passado autoritário implementado com o Golpe Militar de 1964.
O fortalecimento das instituições garante a funcionalidade da democracia e uma perene manutenção da ordem constitucional, o que passa também pelo combate de qualquer prática autoritária que degrada as instituições, se as mesmas não possuem mecanismos eficientes internos e externos de controle.
Entretanto, não basta o discursar contra os modos autocráticos do atual mandatário de plantão nesse contexto de fragilização das instituições por meio de narrativas com finalidades espúrias de enfraquecimento do regime democrático. É preciso envolver as instituições de estado e o conjunto da sociedade para evitar que o projeto conservador em curso no país vença.
Dentre os desafios contemporâneos da democracia, ganha destaque, por exemplo, o combate às fake news, um instrumento baseado em narrativas e não em fatos, que fazem verdadeiro vilipêndio a reputação de pessoas e instituições, numa lógica covarde de ofensa às regras civilizadas que o jogo democrático deve se pautar.
Recentemente, como se não bastasse tal instrumento vil no campo das eleições, testemunhamos a proliferação de narrativas negacionistas, contrárias às consensuais políticas públicas com lastro científico de combate ao flagelo da pandemia de Covid-19, como a vacinação da população, o distanciamento social e o uso de máscaras.Seguiram-se, também, narrativas inverídicas em face de instituições como o Tribunal Superior Eleitoral, bem como o Supremo Tribunal Federal e seus ministros. Tais narrativas merecem a censura pública das instituições de estado e de toda a sociedade, como forma de resistir a qualquer tipo de ataque ou tentativa de fragilizar a democracia brasileira.
A democracia pressupõe quatro pilares de sustentação, (i) a legitimidade popular resultante do sufrágio universal e de mecanismos institucionais de participação social, tais como conselhos diversos, plebiscitos, referendos e outros instrumentos de participação da sociedade nas decisões políticas; (ii) o fortalecimento das instituições de estado e do controle deste através de mecanismos de freios e contrapesos, como dito anteriormente (iii) um pacto constitucional respeitado por todos e a (iv) a democratização do conhecimento como forma de qualificar a democracia.
Citando mais uma vez, o célebre jusfilósofo italiano Norberto Bobbio, que ao tratar do controle do poder registra o seguinte: “a sabedoria institucional da democracia, que enseja um controle dos governantes através da ação dos governados, com isto institucionalizando um dos poucos remédios válidos contra o abuso de poder” , destacando que os regimes republicanos são caracterizados pelo controle público do poder, ressaltando-se que “a única garantia de respeito aos direitos de liberdade está no direito de controlar o poder”.
Esse controle, de natureza nitidamente política, tem por objetivo preservar o equilíbrio das instituições fundamentais ao regime democrático no país, nesse aspecto o Controle pode ser conceituado como a faculdade de vigilância, orientação e correção que um poder, órgão ou autoridade exerce sobre os atos praticados por outro, de forma a verificar-lhes a legalidade e o mérito, bem como assegurar a consecução dos interesses coletivos.
Notas de protestos, pronunciamentos criticando os atos autoritário ajudam, mas não resolvem. Diante dos vários atos contrários Constituição, de tantas omissões frente ao caos social que vive o país é preciso agir para não permitir que o Brasil descambe de vez para um regime autocrático com consequências imprevisíveis.
João Antonio da Silva Filho é Mestre em Filosofia do Direito pela PUC – SP. É autor dos livros “A Democracia e a Democracia em Norberto Bobbio”, “A Era do Direito Positivo” e “O Sujeito Oculto do Crime – Reflexões Sobre a Teoria do Dominio do Fato”, e Os Tribunais de Contas no Estado Democrático de Direito e os desafios do Controle Externo – Advogado, foi vereador da capital por três mandatos consecutivos e deputado estadual por São Paulo. João Antonio nasceu em São João do Paraiso – norte de Minas Gerais. Atualmente é conselheiro presidente do Tribunal de Contas do municipio de São Paulo.