Inaldo da Paixão Santos Araújo
Aos meus colegas auditores que estão sempre em busca da verdade.
Um dos mestres do positivismo jurídico, Hans Kelsen, inicia sua obra “O que é Justiça – A Justiça, o Direito e a Política no espelho da ciência” (São Paulo: Martins Fontes, 2001), reproduzindo fragmentos do julgamento de Jesus Cristo por Pôncio Pilatos, descrito em João, 18:37-38.
Nessa passagem bíblica, o Governador da província romana da Judeia indaga Jesus se Ele realmente é o Rei dos Judeus e o que é a verdade. Em relação à primeira indagação, Cristo responde “Tu dizes que eu sou rei”. No que tange à segunda, o Rei dos Reis calou-se e Pilatos, ao ir ter com os judeus, disse-lhes: “Não acho nele crime algum”.
Nesses tempos trevosos, do império das fake news, onde pode ter razão Monteiro Lobato, em “Memórias da Emília” (30ª edição. Brasiliense, 1986), quando afirma que “Verdade é uma espécie de mentira bem pregada das que ninguém desconfia”, o cenário da supremacia do ego, da ganância ao poder e da exacerbação política nunca estiveram tão presentes no contexto social deste país. O sentimento individualista aflorou em muitos personagens em tempos não tão remotos, e todos passaram a defender a sua (ou as suas) verdade.
A vontade e o desejo por determinado objetivo são atributos intrínsecos ao ser humano, mas até onde ele é considerado como natural sem obstruir a barreira dos direitos, da honra e até da vida do próximo?
Deixo bem claro que o intuito deste artigo não é hastear nenhuma bandeira política, seja de que lado for. Afinal, Deus me deu duas mãos (uma esquerda e uma direita) para, com elas juntas, eu poder orar ou segurar uma corda para seguir adiante. Nada mais longe de mim. A abordagem é única e exclusivamente informativa ou, no máximo, argumentativa em tons concretos e sinceros.
Casos que extrapolam o poder/dever de punibilidade estatal são constantemente noticiados e debatidos nos centros jornalísticos diariamente. É bem verdade que o ordenamento jurídico, diante das arbitrariedades existentes, garantiu, na Carta Magna, em seu artigo 5º, inciso LXXV, o reconhecimento e o direito de indenização pelo erro judicial e pela ultratividade da prisão.
Antes mesmo de avançar para qualquer enfrentamento e discussão de um caso concreto, é de grande valia já ressaltar o impacto emocional e social que um julgamento antecipado resulta sobre qualquer pessoa.
Feita essa breve análise, com o perdão da ironia do título deste texto, desejo citar como exemplo o Caso Cancellier, tendo seu triste enredo se originado em 14 de setembro de 2017 e culminado no fatídico dia 2 de outubro de 2017.
Apesar de apegar-me às comemorações da Independência do Brasil ou até mesmo do início da estação das folhas e das flores, o nono mês do ano de 2017 também foi marcado pela triste lembrança da condução coercitiva que resultou na prisão do então reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e de alguns dos seus professores.
O professor Luiz Carlos Cancellier de Olivo é um caso emblemático não só por ter sido injustamente acusado por desvio de recursos de cursos de educação a distância (EaD) da universidade, conforme ficou comprovado pelo Tribunal de Contas da União (Acórdão nº 1024/2023), mas também pela luta e pelo bom combate que exerceu nos corredores daquele lugar onde tinha tamanho apreço e estima.
A fatídica prisão do reitor e dos docentes universitários foi o estopim de um conjunto de investigações que se mostrariam, mais para a frente, uma mancha no senso de justiça e na carreira de um homem sem lhe garantir direitos mínimos, tais como o contraditório, a ampla defesa, e a certeza de que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
A dádiva da investigação e da apuração dos fatos e a busca da verdade são necessárias para a vivência em sociedade. No entanto extrapolar limites processuais e constitucionais em busca de uma solução midiática jamais será associada ao espírito de uma decisão justa.
Ouvir sempre os dois lados e relutar por decisões precipitadas são deveres atribuídos aos agentes públicos dotados da competência de sentenciar. E o sentido de ultima ratio das prisões não mais encontra amparo legal? Eis o questionamento.
A mídia, imprescindível à sociedade, considerada um veículo informativo de mão dupla, em certas ocasiões, acaba sendo influenciada pelo desejo da melhor notícia ou, nesse caso, pela notícia que venha a melhor impactar os seus telespectadores e ouvintes.
Pergunto-me se e quando a estrutura democrática se arruinou. A imparcialidade política parece estar em desuso nas casas do poder. Claro, sem citar nomes ou culpados dessa conduta julgativa.
E se errar é humano, reconhecer o erro também é, ou estou equivocado? A mudança de postura no trato de determinada circunstância, diante de um desacerto, enobrece o seu autor.
Na condição de professor, imagino o quanto deve ter sido difícil para o reitor Cancellier suportar a decretação do seu afastamento da universidade. Ao ponto de seu último lamento guardado dentro do plástico que envolvia sua carteira de motorista ser: “A minha morte foi decretada quando fui banido da universidade!!!”.
A paixão de um docente que “veste a camisa” na disseminação do conhecimento e no desejo de mudanças sociais é algo quase que inexplicável. Mas, por fazer parte desse meio, compreendo bem tal sentimento.
Os dizeres no bilhete deixado junto a seu corpo (Minha morte foi decretada no dia do meu afastamento da universidade!!! – repiso), antes de cometer suicídio em um shopping local, foi a pior das premonições possíveis para um educador que sempre objetivou o progresso da escola superior da qual fazia parte.
A devida reparação pública se faz ainda mais necessária quando se lamentam sete anos do seu passamento. A sociedade não pode continuar surda. Afinal, ainda hoje é preciso deixar claro onde está a verdade que culminou com o suicídio de Cancellier, pois, para aquele que, no ato da sua posse como Magnífico Reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, afirmou que “Por mais que as dificuldades surjam, uma palavra de conciliação, de abertura e de diálogo sempre pode trazer uma luz”, ela é mais do que merecida.
Inaldo da Paixão Santos Araújo – Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado da Bahia (TCE-BA) e vice-presidente de auditoria do Instituto Rui Barbosa (IRB)