Qualidade na educação pública: um novo instrumento

O longo período de pandemia tem tornado ainda mais latentes as muitas dificuldades vivenciadas na realidade da educação pública, incrementando um cenário consagrador de desigualdades que já era preocupante. A exclusão escolar, por exemplo — assim entendida a situação de crianças e adolescentes que estão fora da escola — é um dos problemas intensificados no momento atual. Dados da primeira etapa do Censo Escolar 2021, divulgados recentemente pelo Inep, apontam a queda de matrículas na educação infantil (em creches e pré-escolas) principalmente na rede privada, sem a esperada correspondência de incremento de matrículas na rede pública [1]. Em análise preliminar, esses dados podem sugerir que as dificuldades do ensino a distância para as crianças menores foram um complicador a mais [2] com relação à queda de renda familiar no período pandêmico. Nesse sentido, acesso e utilização da tecnologia para as aulas a distância (incluindo equipamentos, pacote de dados e velocidade da internet, por exemplo) e as naturais dificuldades do processo de aprendizagem nesse modelo são variáveis que podem ter contribuído para a decisão de não matricular as crianças menores na escola, incluindo na rede pública, cujo ensino é obrigatoriamente gratuito. A situação dramática foi apresentada em relatório de Unicef, Unesco e Banco Mundial: estima-se que aproximadamente 10% dos estudantes jamais retornarão às escolas e que, no período de pandemia, os alunos aprenderam apenas cerca de um quarto do que teriam aprendido com aulas presenciais [3]. Ainda que seja complexo quantificar os prejuízos para a aprendizagem — para além dos abalos na saúde mental e na segurança alimentar das crianças e adolescentes —, é importante que as redes de ensino possam planejar e adotar medidas para um amplo diagnóstico e posterior plano para recuperação da aprendizagem [4].

Essa longa introdução talvez já tenha desanimado os leitores e leitoras com relação ao nosso atraso na luta por qualidade na educação pública. Entretanto, o período de preocupações não pode desviar a atenção das novidades que, se compreendidas e bem implementadas, podem ser alvissareiras. Nesse sentido, a Emenda Constitucional nº 108/2020 estabeleceu para os estados a obrigatoriedade da implantação do chamado ICMS Educação, mecanismo importante que imporá mudança na distribuição do percentual de repasse de ICMS aos municípios, com o objetivo de tornar o financiamento da educação mais redistributivo e equitativo.

O novo modelo altera os percentuais de distribuição do ICMS para os municípios incorporando critérios relacionados à melhoria dos resultados da aprendizagem e redução das desigualdades educacionais, considerando o nível socioeconômico dos estudantes. A vinculação à qualidade é um grande avanço, pois a regra anterior deixava à livre disposição da lei estadual a parcela do ICMS pertencente aos municípios não relacionada ao valor adicionado fiscal.

Os estados precisarão modificar suas leis e incorporar os critérios de qualidade na educação até agosto de 2022, quando se completarão dois anos da promulgação da EC nº 108/2020 (artigo 3º). Até o presente momento, somente oito estados possuem legislação que considera critérios educacionais para distribuição do ICMS aos municípios [5]. O envolvimento necessário de estados e municípios traz à tona a necessidade de diálogo e colaboração para a plena efetividade de um direito submetido a competências comuns, materializando o federalismo cooperativo.

Não é possível, apontar, a priori, quais seriam o modelo e os indicadores mais adequados para aferir a melhoria nos resultados de aprendizado e o aumento da equidade. Entretanto, é possível apontar a necessidade de realizar ampla discussão com instituições públicas e privadas e também com a sociedade civil (notadamente com entidades ligadas à educação pública) para que o ICMS seja considerado verdadeiro instrumento de política pública educacional, voltado ao alcance dos objetivos constitucionais. Em sua qualidade de instrumento, a nova legislação deve ser discutida e preparada de forma a conter objetivos, metas, indicadores e resultados que permitam seu posterior monitoramento e avaliação. Nesse particular se percebe a nítida intenção de que monitoramento e avaliação, em especial, “sejam utilizados para tornar mais complexo os processos de planejamento e decisão sobre gastos públicos, em um movimento contínuo de aprendizado voltado ao aprimoramento dos processos alocativos e decisórios” [6]. Em razão de suas competências ligadas ao controle da atividade financeira do estado e também das políticas públicas, os Tribunais de Contas possuem aptidão e potencialidade para participarem deste complexo e importante processo.

Há um grande caminho para que as promessas feitas pela Constituição com relação à qualidade da educação possam sair do plano da norma (ou dos sonhos) para o campo dos fatos (ou da realidade). Para percorrer esse caminho de forma a se chegar a um bom lugar, é necessário que os entes da federação e seus representantes (alocados em todos os poderes) atuem de forma cooperada e harmônica, superando divergências e interesses setoriais para priorizar o estudante e o aprendizado, como exige nossa Constituição.

Fabrício Motta é conselheiro do TCM-GO e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Cezar Miola é conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, presidente do Comitê Técnico da Educação do Instituto Rui Barbosa e presidente eleito da Atricon.

[1] O Comitê Técnico da Educação do Instituto Rui Barbosa, juntamente com o Unicef, Undime, CNMP e Atricon lançou cartilha com o objetivo de reforçar a importância da implementação da busca ativa escolar e de nortear os gestores públicos que pretendem revisar sua estratégia de enfrentamento da exclusão escolar de forma a torná-la mais estruturada e resolutiva. https://projetoscte.irbcontas.org.br/wp-content/uploads/2021/06/Cartilha-TodosNaEscola_vFinal2.pdf

[2] Com fundamento em estudo divulgado pela OCDE, o Gaepe Brasil anotou que “A aprendizagem na escola é essencialmente importante para os primeiros anos da educação infantil, pois essa faixa etária, mais do que quaisquer outras, necessita de um contato direto com educadores e, desse modo, as alternativas digitais são menos eficazes” (Manifestação Gaepe Brasil nº 02/2021, disponível em https://articule.org.br/wp-content/uploads/2021/07/Gaepe-Brasil_-Manifestac%CC%A7a%CC%83o-2-Urge%CC%82ncia-do-retorno-a%CC%80s-aulas-presenciais-Julho-2021.pdf)

[3] https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/01/23/unicef-covid-gerou-erosao-do-ensino-no-brasil-e-retrocesso-de-uma-decada.htm

[4] Nesse sentido a manifestação do Gaepe Brasil: https://gaepebrasil.com.br/2021/12/16/gaepe-brasil-defende-obrigatoriedade-de-planos-de-avaliacao-e-recuperacao-nas-redes-de-ensino-da-educacao-basica/

[5] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/02/01/estados-descumprem-regra-que-vincula-icms-ao-ensino.ghtml

[6] BONIFÁCIO, Robert; MOTTA, Fabrício Macedo. Monitoramento e avaliação de políticas publicas no Brasil: abordagem conceitual e trajetória de desenvolvimento jurídico e institucional. Revista de Direito Econômico e Socioambiental, Curitiba, v. 12, nº 2, p. 340-371, maio/ago. 2021. doi: 10.7213/rev.dir.econ.soc.v12i3.28653